Talvez você já tenha visto antes no ótimo Waking Life, filme de 2001 de Richard Linklater: a animação por rotoscopia, alicerce estético de O Homem Duplo, consiste em revestir imagens previamente captadas por uma câmera com uma “capa” desenhada à mão. A intenção é revelar uma dimensão distinta do mesmo mundo que enxergamos todos os dias, como se um óculos especial nos permitisse observar detalhes que o olho nu não capta – e, ao mesmo tempo, se valer da natureza artificial da animação para introduzir elementos fantásticos neste mundo e, por justaposição, torná-los lógicos, harmoniosos, aceitáveis. Premissa perfeita, é preciso que se diga, para o filme de ficção científica – ainda que íntimo, pequeno – que O Homem Duplo é (sua fonte é um romance de Philip K. Dick, mesmo autor de Do the Androids Dream of Electric Sheep?, o livro a partir do qual Ridley Scott fez Blade Runner).
Quando se trata de filmar seres humanos, o resultado da rotoscopia é o hiper-realismo: as sombras sutis que perpassam tudo o que os nossos olhos vêem são exacerbadas; no rosto ou no corpo de um ator, as suaves variações da luz do ambiente que realçam este ou aquele detalhe viram manchas mais ou menos escuras que tremelicam por sobre a imagem. Quando for ver O Homem Duplo, tente assisti-lo por alguns instantes com os olhos quase fechados, nublados. O que se descortinará será algo bem próximo da imagem “real” que Linklater captou no início do processo com suas câmeras de vídeo de alta definição. Um efeito ótico à disposição de qualquer um de nós (vem de fábrica) que revelará os Keanu Reeves, Robert Downey Jr., Winona Ryder “de verdade” por baixo da capa.
O projeto O Homem Duplo, como se vê, é fascinante. Porque, então, o filme, um dos dois desovados em 2006 por Linklater (Fast Food Nation, o outro, ainda está por estrear no Brasil), não é? Se há tanto o que falar sobre o conceito, por que se sai do cinema com a sensação de que há pouco o que se falar sobre o filme em si? É claro, é sempre possível que seja uma questão de a história não interessar, de os conceitos trabalhados nela – alteração da percepção, sociedade da informação, o Eu observado pelo Outro ou por si próprio – serem um pouco complexos demais para a forma como o roteiro os justapõe. Seria só um roteiro infeliz, ou um daqueles casos de um livro inadaptável para o cinema? Fato é que é difícil se envolver com essa história da pequena comunidade de usuários de drogas vigiada pela polícia num futuro próximo (talvez vigiada de dentro, talvez por um deles, não numa trama policial comum de informantes e informados, mas na principal camada de realidade alterada do filme). O Homem Duplo acaba sendo, sempre, um filme que se observa de fora. Uma curiosidade, um filme distanciado demais de si próprio.
E curiosidade mesmo é que talvez o problema maior esteja na própria base do projeto, na premissa perfeita, na camada extra gerada pela animação por rotoscopia. Waking Life, um filme que se passava todo dentro de um sonho, tinha um efeito verdadeiramente hipnótico. “Vendia” perfeitamente, através do tremelicar constante do fundo, das “ondas” geradas pela animação reproduzindo as mudanças de perspectiva geradas por uma simples caminhada (ou um vôo, pois assim são os sonhos), a noção fluida de um mundo que é o nosso de todos os dias, solidamente enraizado nas nossas experiências mais prosaicas, mas que, ao mesmo tempo, não é: o mundo do subconsciente. E, num filme que o explorava tão bem através das imagens, ficava fácil aceitar o passeio turístico pela filosofia, o parque temático do pensamento humano que podia muito bem ter resultado num filme insuportavelmente “pseudo”. Assim é a mente, um turbilhão. O Homem Duplo, por sua vez, elementos fantásticos à parte, se passa no cotidiano, no aqui e agora (daqui a sete anos, para ser mais exato, mas a intenção clara é um ‘futuro do presente”). Lida com o concreto. Aqui, o efeito da rotoscopia distrai, impede, para usar um paralelo da própria trama do filme, o Eu de se enxergar nos Outros.
E isso, somado ao texto atabalhoado, decreta a falência do filme: até que a gente deixe de ficar reparando em como o Keanu Reeves desenhado mimetiza o verdadeiro, que está por baixo, já se passou reto por todas as portas de entrada da percepção de que essa história pudesse nos dizer respeito. Premissa perfeita? O que a rotoscopia acaba sendo, no fim das contas, é não uma capa, mas uma armadura. Que impede o filme de “se machucar”, de receber elementos que não façam parte de seu bem pensado projeto. Mas que, justo por isso, impede a penetração por parte daquele elemento imponderável com que nenhum filme pode deixar de contar: a platéia e suas emoções.
# O HOMEM DUPLO (A Scanner Darkly)
EUA, 2006
Direção e roteiro: RICHARD LINKLATER
Fotografia: SHANE F. KELLY
Direção de Arte: BRUCE CURTIS
Edição: SANDRA ADAIR
Música: GRAHAM REYNOLDS
Coordenação de animação: CHRISTOPHER S. JENNINGS
Elenco: KEANU REEVES, ROBERT DOWNEY JR., WINONA RYDER, RORY COCHRANE, WOODY HARRELSON
Duração: 100 minutos