Em Vênus, Peter O’Toole faz o papel de Maurice, um idoso ator britânico que teria sido “deslumbrante” na juventude – e por mais de uma vez isso é mencionado em diálogos. Não será fácil separar a pessoa do ator O’Toole do seu personagem que também é um ator. Seu rosto mais jovem só vai aparecer em uma foto. Não se utiliza nenhum clip de seus filmes antigos da época em que Noel Coward dizia que “se fosse um pouquinho mais bonito, seria Florence, em vez de Lawrence da Arábia” - o filme homônimo que o revelou definitivamente.
Mas Maurice, uma espécie de leonino Don Juan no inverno, jamais seria uma ‘Florence’, tão atraído que ele é pelo eterno feminino, mesmo que, na velhice, esteja impotente, doente e decrépito. A oportunidade de conviver com a sobrinha-neta de um amigo (que também é outro ator idoso) surge como uma espécie de afrodisíaco platônico (e vale o paradoxo) para tentar se manter próximo do corpo de uma jovem, mesmo que sua ´Galatéa´ jamais dê impressão de que vá chegar a ser uma Lady em matéria de polidez, cultura ou consideração pelos demais.
Ele bem que tenta: leva-a a teatro, museus e settings de filmagem – mas a mocinha provinciana é quase o tempo todo bronca, rude, grosseira, sem nenhuma educação e desagradável. Pior ainda, ela vai se revelar algo interesseira e tentar obter pequenas vantagens do velho babão por sua juventude, quase sugerindo uma espécie de aprendiz de Lola-Lola, enquanto ele quase que faz o papel de ´Ator Unrat´ (aparentado ao ´Professor Unrat´ de O Anjo Azul), que dá presentinhos em troca de beijar o ombro ou cheirar a mão dela que esteve por alguns instantes onde as coxas se encontram .
Mas Maurice não é nenhum ingênuo como o velho Unrat: no passado ele deixou mulher e filhos pequenos por conquistas amorosas e mantidas ao longo de sua vida "útil". Como é dito em conversa com sua ex-mulher (Vanessa Redgrave, em breve e competente participação), ele sempre priorizou o prazer. Egoísta, mas consciente de suas enormes limitações atuais, ele sabe muito bem, por analogia com seu passado, que as prioridades da moça sem nenhum polimento nem hipocrisia social não incluiriam um velho como ele, a não ser pelo quer ele pudesse lhe proporcionar, o que ela deixa bem claro.
Mas sua fascinação pelo corpo de uma jovem mulher e seu erotismo – ainda que “teórico” (termo que é usado no filme para a atração sensual do ex-conquistador em declínio) – vão suplantar as características desagradáveis de sua “Vênus” – a ponto de assim se referir à guria, por alusão ao famoso quadro de Velásquez em que vemos o corpo magnífico da deusa despida de costas, admirando-se no espelho sustentado por um pequeno Eros.
A obstinação do erotismo impossível de ser concretizado fisicamente pode ser um foco menos frequentemente enfrentado e que se encontra no roteiro de Hanif Kureishi, escritor que já foi utilizado em filmes com aspectos mais ou menos ousados como Intimidade, de Patrice Chéreau, Minha Adorável Lavanderia e Sammy e Rosie, ambos de Stephen Frears, além de Recomeçar (The Mother), do mesmo diretor de Vênus, Roger Mitchell – este último tinha um tema parecido, trocando os sexos do casal central, também formado por uma dupla com grande diferença de idade.
Mas o que esperar de um artesão mediano como Roger Michell? Ele é o diretor de Um Lugar chamado Notting Hill - veículo para Julia Roberts mostrar que também podia ser boa gente, apesar de receber vinte milhões de dólares por filme, “chupando” descaradamente o final de A Princesa e o Plebeu, de William Wyler. Mais recentemente, Michell rodou Amor Para Sempre (que virou Amor Obsessivo em dvd) onde desperdiçava uma forte situação dramática inicial de pessoas unidas em uma inesperada e trágica situação-limite - mas que se transformava em algo como uma “Atração Fatal” de psicótico gay - ainda que neste filme a culpa possa ser atribuída ao enredo do livro em que se baseava, do (às vezes) superestimado Ian McEwan.
Em algum momento de Vênus Michell até parece se esforçar para construir um retrato um pouco mais cru e menos meloso do que o que se vê em tantos outros filmes geriátricos recentes - mas sucumbe (com provável auxílio do roteirista Kureishi) a uma evolução um tanto súbita, forçada por lances de enredo e principalmente inconvincente para a personagem da antipática jovem interpretada sem complacência e estoicamente por Jodie Whittaker – mas só até certo ponto...
Há vários bons momentos, entretanto, graças especialmente aos desempenhos - que nos convencem, mais uma vez, de que a Inglaterra funciona como uma fábrica de pizzas na produção em série de intérpretes talentosos de várias idades. Como exemplo, temos a dança de O’Toole com o muito bom Leslie Philips, ao som de um encantador Alegretto das Danças Eslavas de Dvorak (utilizado um pouco demais em outros trechos), dança que ocorre quando os dois vão visitar uma igreja com memorial para atores já falecidos. A trilha sonora oscila entre ótimas intervenções menos harmoniosas com outras entradas mais insistentes. A fotografia soturna é adequada ao clima outonal londrino e existencial pretendido.
Mas se Vênus virá a merecer um lugar na história do cinema será quase que apenas pela participação de um Peter O’Toole crepuscular, com um rosto esquelético que mal lembra o “deslumbrante” astro dos anos 1960 quando foi, dentre outros personagens que criou de forma inesquecível, Lawrence da Arábia, Lord Jim (do livro de Joseph Conrad) e - por duas vezes - Henrique II, em Becket e em Leão no Inverno - um título profético a se considerar seu atual ‘Maurice’.
VÊNUS (VENUS)
Inglaterra, 2006
Direção: ROGER MICHELL
Roteiro: HANIF KUREISHI
Fotografia: HARIS ZAMBARLOUKOS
Montagem: NICOLAS GASTER
Música: DAVID ARNOLD, CORINNE BAILEY RAE
Elenco: PETER O’TOOLE, JODIE WHITTAKER, LESLIE PHILLIPS
Duração: 95 minutos
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