Ao assumir a tarefa de adaptar a continuação escrita por Stephen King para O Iluminado - por sua vez, apropriado por Kubrick em 1980 numa obra celebremente venerada pelo público geral e detestada pelo autor original - o diretor Mike Flanagan aceitou um desafio considerável: conciliar num mesmo filme as versões consideravelmente conflitantes de um mesmo universo criadas por dois grandes mestres. Tudo isso sem abdicar, ao mesmo tempo, do estilo próprio desenvolvido ao longo de uma prolífica carreira no gênero do horror que culminou, recentemente, no grande sucesso da série A Maldição da Residência Hill, audaciosa não-adaptação do clássico homônimo de Shirley Jackson. Ao longo das duas horas e meia de duração de Doutor Sono, que estreia hoje nos cinemas brasileiros, Flanagan dá conta do desafio com níveis de sucesso variáveis, mas uma clareza firme e constante que garante o envolvimento do espectador.
Menos horror que uma aventura adulta com toques de drama psicológico, apesar de algumas imagens verdadeiramente assombrosas e ocasionais bons sustos, o filme se inicia reapresentando-nos a Danny e Wendy (interpretados por Roger Dale Floyd e Alex Essoe, que evocam razoavelmente bem os atores originais), tentando seguir com suas vidas numa ensolarada Flórida após os eventos de O Iluminado. O trauma deixado pela estadia no Hotel Overlook, no entanto, não é o único problema enfrentado por Danny. As sinistras figuras que habitavam o hotel estão à sua procura, mais famintas do que nunca - a fome desesperada das sombras do mundo pelo brilho que existe nas pessoas é um tema constante no filme - e a única solução que o menino encontra para lidar com a situação é trancá-las em caixas imaginárias dentro da própria mente.
Mais de trinta anos depois, Dan Torrance (Ewan McGregor) é um homem desesperadamente consumido pelos próprios demônios, que começa a reencontrar seu eixo após um brutal momento no fundo do poço, uma mudança de cenário e um tocante gesto de confiança vindo do empático desconhecido Billy Freeman (Cliff Curtis). Enquanto isso, uma menina com poderes extraordinários (Abra, interpretada por Kyliegh Curran) cresce sob os cuidados de seus amorosos mas confusos pais, e um insidioso grupo de seres ávidos pela luminância alheia, liderado pela envolvente Rose Cartola (Rebecca Ferguson), atravessa o país fazendo mais e mais trágicas vítimas a cada parada.
Apoiado pela naturalidade de McGregor, cujos gestos e olhares conferem verdade até aos mais impronunciáveis diálogos, pelo carisma de Ferguson e pela vivacidade de Curran, Flanagan avança sem pressa alguma para colocar no lugar cada peça do quebra-cabeças que envolverá os três atores na mesma trama - é apenas depois de mais de uma hora de filme que Dan e Abra, cuja relação é o centro emocional da narrativa, realmente se encontram e dispara-se a sucessão de eventos que nos levará até o confronto final. Longe de se tornar arrastado ou enfadonho, no entanto, é esse o momento em que o Doutor Sono verdadeiramente brilha - quando o diretor, trabalhando com personagens e cenários jamais tocados por Kubrick, liberta-se das convolutas sombras do mestre para filmar com seu próprio estilo, perfeitamente em sintonia com o caráter mais claro e direto da escrita de Stephen King.
Com personagens cativantes, vilões estilosos carregando necessidades e relações surpreendentemente humanas por trás de seus atos monstruosos (um pouco mais de atenção, no entanto, poderia ter sido dada aos membros secundários do grupo, que quase sempre limitam-se a posar canhestramente feito figuras de papelão), algumas reviravoltas e pequenos toques de humor, o filme avança com competência. E conquista, de fato, sucesso quase completo na tarefa de nos fazer ignorar os pequenos deslizes narrativos e as questões relativas às representação feminina previsivelmente herdadas da obra de King - uma menina mágica infalível, uma femme fatale sedenta por poder, uma lolita cujo discurso de sobrevivência é negado pelo seu destino e todas as mães, as mulheres comuns de meia-idade, inexplicavelmente apagadas ou afastadas da narrativa, não são coisa nova e não são suficiente.
Finalmente, no terceiro ato, a narrativa - apoiada em motivações não muito firmes - nos leva ao esperado desfecho no Overlook Hotel. Na maioria das entrevistas sobre o filme, Flanagan fala sobre seu desejo de replicar minuciosa e impecavelmente cada detalhe do Overlook criado por Kubrick. A obsessão, apesar do calafrio que percorre a espinha quando soa a poderosa trilha da obra original e de alguns bons momentos, prejudica o desfecho de sua continuação, desacelerando o ritmo para nos fazer percorrer corredores e aposentos que já vimos muitas vezes antes, e que nunca voltarão a ser filmados com a mesma visão e precisão. Como toda vítima de assombração, Doutor Sono é sempre melhor e mais forte quando consegue se desamarrar do passado e olhar para frente.