Richard Eyre, que assina Notas sobre um Escândalo, também é conhecido e premiado como experiente encenador de teatro capaz de obter trabalhos soberbos de seus atores. No cinema já realizou A Bela do Palco - que partia da arte de interpretar papéis - e ainda Íris - em que o elenco, que já trazia Judi Dench à frente, teve várias premiações. Com base em tal currículo, bem como nas participações brilhantes de suas atrizes, poderíamos dizer que este Notas... pertence ao tipo de filme que se aprecia por ser o que se chama “filme de atores” – tal como o contemporâneo e conterrâneo Vênus, que se destaca sobretudo, e quase que só, por Peter O’Toole.
Mas vale dizer que esta visão inicial não se deve apenas às protagonistas, apesar da presença tão marcante de Judi Dench e Cate Blanchett no que é mais do que um “duelo”: é uma parceria, já que a intensidade emocional de interpretação de uma parece ter funcionado como estímulo para incrementar ainda mais a capacidade de desempenho da outra.
Só que seria injusto que se ignorasse o complemento “exato” oferecido pelos atores masculinos em papéis secundários. E novamente, não é só por Billy Nighy como o marido da professora de arte vivida por Blanchett, nem apenas por Andrew Simpson, fazendo o aluno de 15 anos com quem ela se envolve. Ambos estão, no mínimo, “exatos” em seus papéis. Mas também estão afinadíssimos os demais atores em personagens com presença ainda mais breve: o diretor da escola e o professor platonicamente enamorado por Blanchett.
Parece importante ressaltar a contribuição de todo o elenco porque também todos os personagens, até mesmo aqueles aparentemente mais irrelevantes - como a professora que vai ser mãe sem que seus colegas percebam a “barriguinha de quatro meses” que sua obesidade não deixa distinguir -, todos funcionam como peças de uma engrenagem de roteiro bem azeitada para atingir suas metas. Neste sentido, Notes on a Scandal - título original - também pode ser considerado um “filme de roteiro” – o qual leva a assinatura de Patrick Marber, o premiado autor teatral da peça Closer que deu origem ao filme Perto Demais, de Mike Nichols.
E quais são as metas que o roteiro visa? Além de deixar a platéia sem fôlego com uma dose dupla de situações escandalosas, tão ao gosto de tablóides ingleses ou da chamada “imprensa marrom” de qualquer país, o filme parece também pretender deixar “passar algo” que mal se perceba claramente numa primeira visada, mas que “está lá” – e que teria alguma importância na arquitetura do enredo tal como foi desenvolvido.
Pode-se até imaginar que talvez tenha sido abandonada nas filmagens - ou na sala de montagem - uma cena a mais com a mãe da professora encarnada por Cate Blanchett, a incauta Sheba Hart (que nome pouco sutil que a mãe - ou a criadora da personagem - lhe deu!). A mãe de Sheba é brevemente mencionada como “uma relação difícil” na longa conversa confessional que Sheba faz à sua “muy amiga” Bárbara (Judi Dench). E esta mãe vai aparecer um pouco menos rapidamente numa conversa, falando com alguém - que nem vemos direito quem é - sobre a filha. E parece não tê-la em alta conta, dizendo ainda alguma coisa sobre a repercussão da morte do pai de Sheba sobre a filha.
É bem possível que a maioria dos espectadores dê pouca atenção a estes dois detalhes “maternos” na evolução do filme, até porque a ação - enquanto a mãe é vista por uma porta apenas entreaberta - está centrada em novo episódio do escândalo principal de que trata o título: o caso da professora com um aluno vinte anos mais jovem e - legalmente - um menor de idade, ainda que “testosterônicamente” - e no que diz respeito à sua capacidade de sedução e de envolver - plenamente desenvolvido.
Questões maternas são uma das “pistas” que o roteiro parece preocupado em oferecer como elementos que “aprofundem” e/ou “expliquem” um pouco mais a “personalidade” de Sheba – uma mulher que se revela capaz de desrespeitar limites quando se deixa levar - dando algum esboço sobre seus “antecedentes”. Vemos fotos de sua juventude com um visual punk, caracterizando uma fase (?) “porra louca”; sabemos de um casamento (o repouso da guerreira?) com um homem bem mais velho do que ela; sabemos que ela tem um filho com Síndrome de Down, de quem ela cuidou com exclusividade por mais de dez anos; e – como se não fosse suficiente – somos informados de uma relação ruim com a mãe e conhecemos a visão desta mãe sobre sua filha: a morte do pai foi uma perda muito marcante para Sheba.
Se alguém pensar em questões ligadas ao “complexo de Édipo” não estará equivocado. O abismo de idades que tende a existir em relações “edípicas” também se torna recorrente no roteiro: existe não só entre Sheba e seu aluno, como também entre seu marido e ela. E, claro, entre a quase aposentada professora de História, Bárbara, e a bem mais jovem professora de artes.
Parece haver a busca de instrumentação “psicanalítica” perpassando todo o filme, ainda que de forma nem sempre evidente. Por exemplo, temos a tal cena de confidências de Sheba para Bárbara, encenada quase como se tratasse de um “setting” analítico: Sheba está algo recostada numa espécie de sofá e Bárbara está escutando atentamente, sem quase interferir no desabafo catártico de sua amiga que, entretanto, esconde o que de mais atual e problemático está se passando em sua vida presente, o “caso” com um rapazola de quinze anos.
E temos ainda a caracterização – a rigor, dispensável – de Bárbara como uma homossexual (nem tão) reprimida – e tratada como “sapatão” explicitamente pela imprensa; e de forma velada e irônica por alusões de seus colegas de trabalho. Além de poder incorrer na fúria dos grupos “politicamente corretos” e /ou GLS, há uma ênfase na “psicologização” de uma homossexual rejeitada como “explicação” para a vilania de Bárbara deixar vazar o segredo da colega com o aluno. A inveja da maternidade e da juventude perdida somando-se ao amor-próprio ferido pela solidão a que se vê aprisionada, tudo isso é transformado em uma mistura de humor sarcástico e cruel sobre as demais pessoas nas anotações que Bárbara faz em seu diário. Para tais vicissitudes avinagrarem sua própria vida e suas relações com as pessoas não era necessário uma personagem “lésbica”, que só escapa da caricatura pela grandeza de interpretação de Judy Dench. Por vezes a atriz parece estar se divertindo com o papel que chega às raias das “vilãs de novelas”.
Não se sabe se foi por isto que Zoe Heller, a autora do romance que deu base ao filme, fez algumas restrições à perda de “humor” desta personagem na transposição para as telas. Mas certamente o enredo só teria a ganhar se Barbara fosse “apenas” muito solitária, bem mais idosa e enormemente carente - e ela é tudo isso - sem precisar de se ter evidenciada sua inclinação homoerótica – que, aliás, nunca deixaria de existir para quem tivesse perspicácia de olhar, mas que seria mais comovente do que perversa caso permanecesse “latente” ao invés de “manifesta” – como se diz em Psicanálise para inclinações inconscientes e conscientes, respectivamente. Até porque, em algum momento da evolução da história, nem a fragilização pública de Sheba explica sua ingenuidade em prosseguir acreditando nas boas intenções por parte de Bárbara, já tão enxovalhada por todos.
Com estas ênfases, algumas nada sutis, o filme se aproxima perigosamente do dramalhão, salvo pela correção formal, ainda que sem nenhum vôo mais alto, de um diretor que mais uma vez se mostra artesanal - e britanicamente – eficiente. E, acima de tudo, pelo elenco de rendimento admirável. Mas a obra perde o foco de outra abordagem muito mais interessante para o – talvez - pretendido ponto de vista psicanalítico: a questão dos dramas que podem surgir do apaixonamento erótico desmedido em situações rechaçadas pela cultura, pelos hábitos e costumes, mas ao qual todos podemos estar sujeitos - ainda que alguns mais do que outros.
Em uma passagem ficcional do roteiro de Freud, Além da Alma que Sartre escreveu para John Huston (não utilizada na versão final do filme de 1962), a esposa de Freud questionava o criador da psicanálise: “Transferência! Transferência! Tudo para você é transferência! Meu amor por você também é ‘transferência’?” Ao que Freud responderia: “E por que não?”...
Para a Psicanálise clássica, a relação que o paciente estabelece com o seu terapeuta (mas não só ali) carregaria padrões advindos de relacionamentos anteriores, até mesmo originados na mais tenra infância, incluindo-se aí o famoso “amor de transferência” observado por Freud quando as pacientes histéricas manifestavam atração erótica pelo analista. Freud advertiu seus seguidores para que não acreditassem nesta “encenação”, pois os analistas, na atualidade, apenas estariam ocupando o papel de “atores”, mas o “amor” seria por um “personagem” da história do passado da paciente. E ator não é personagem!
A paciente apaixonada não teria consciência das raízes antigas do que parece autônomo no presente. E, por parte do terapeuta, envolver-se com a paciente seria, portanto, um grave erro técnico – além da questão ética, já que psicanalistas, médicos, professores, patrões e superiores hierárquicos em geral estariam ocupando uma situação de privilégio e de poder sobre as pessoas a eles submissas de uma forma ou de outra: objetiva ou simbólica.
A transferência, como sugeria Sartre em sua boutade, não seria, entretanto, uma exclusividade da relação analítica. Os envolvimentos de alunos com professores devem datar de muitos séculos antes da psicanálise ter sido inventada. Afinal, podemos recordar Heloisa e Abelardo - para não falar de outras possíveis relações íntimas entre preceptores e discípulos na Grécia Antiga. Apaixonamentos de professores de música e alunas são retratados em obras cômicas (O Barbeiro de Sevilha) e dramáticas (Ligações Perigosas) quando representavam escapes de preconceitos e interdições hoje já abandonados.
É claro que o “superego social” pode funcionar em muitas situações reais contemporâneas, impedindo que mestres e alunos cheguem às vias de fato quando surgem vertigens apaixonadas com seu intenso e excitante (até porque proibido) apelo sexual. O cinema mesmo já abordou em vários filmes alguns casos reais que se tornaram públicos: um deles, ocorrido na França em pleno maio de ‘68, rendeu o filme de André Cayatte com Annie Girardot, Mourir d”Aimer, de 1971. Na mostra do Rio de 2005, foi exibido Green Chair, de Park Chul-Soo, filme sul-coreano de 2004 e que tratava de um episódio similar mais recente.
A professora real de 1968 chegou ao suicídio. O jovem sul-coreano ia completar maioridade em seis meses, e se já tivesse 20 anos - a maioridade das leis coreanas – a professora não teria sido presa. Ele a aguardava na saída do presídio. Nos EUA, um caso análogo vem tendo desdobramentos já que tão logo a professora condenada saiu em liberdade condicional, voltou a se encontrar com seu ex-aluno. E ainda que agora estejam todos mais velhos, ela é novamente processada, pois o envolvimento teria se dado quando o rapaz não tinha maioridade e não era considerado como tendo livre arbítrio para fazer suas escolhas. A pena exigia, inclusive, que ela mantivesse distância física (medida em metros) do rapaz.
Em um momento em que se discutem por aqui as leis de maioridade penal e criminal, seria interessante que fosse enfrentada a melindrosa questão da "maioridade" para a vida sexual – coisa que só existe virtualmente na legislação, visto que a maturidade hormonal não espera os 18 anos para se manifestar, ainda que a maturidade sensu lato não acompanhe a biologia; e o desejo de muitos, jovens e nem tanto, tantas vezes pese mais que tudo, escapando de uma escolha dentro do exercício da vontade consciente adequada às convenções sociais e morais, não raro tão diferentes em diferentes povos.
Retornando ao filme em questão, cabe assinalar (COM ADVERTÊNCIA DE QUE SE VAI ABORDAR DAQUI PARA A FRENTE ALGUMAS PASSAGENS DO FILME QUE PODEM NÃO SER DO INTERESSE PARA QUEM AINDA NÃO O ASSISTIU) que, como foi sugerido antes, a professora teria sido mais “seduzida” pelo rapazola esperto do que sendo aquela que “desencaminhou” um aluno, tal como os pais do jovem pretendem acreditar. O que não tira a responsabilidade dos atos da mulher de 36 anos: ela se explica (mal) como tendo se dado “o direito” de se deixar levar pelo apaixonamento depois de tanto tempo de renúncia à vida pessoal; por ter ficado cuidando da família - e com um filho “excepcional” por tantos anos. Os gregos antigos advertiam para a hybris (conceito traduzido como desmesura, descomedimento) que costuma acompanhar os gestos de orgulho, pretensão e arrogância - que Freud também abordou em um interessante ensaio sobre as pessoas que se consideram “exceções”, pretendendo-se “direitos” que os demais não têm. Um jovem talentoso para as artes, simpático e bem-apessoado: certamente este era o filho idealizado que ela queria ter tido...
É uma pena que o filme enfraqueça a abordagem das questões “escandalosas” às quais todos poderemos estar sujeitos, seja quanto a apaixonamentos insensatos e transgressores (o caso de Sheba), seja quanto à insensatez da fúria narcísica que pode emergir quando se sofre a rejeição de alguém cuja relação fantasiávamos de modo idealizado (fúria que leva às denúncias “vingativas” de Barbara). A cena final, quando esta surge quase como em uma compulsiva variação de serial killer no terreno de cativar mulheres mais novas para suprir suas carências, só não despenca como um péssimo pastiche completo da cena final de O Colecionador, 1966, graças à excepcional capacidade de Judi Dench emprestar humanidade à sua personagem, empobrecida pelo rótulo de “lésbica” - como se esta redução fosse tudo o que seria suficiente e necessário para “explicar” as atitudes patéticas e rancorosas que ela toma.
É uma pena, insistimos, porque o caminho pelo qual Barbara deixa “vazar” as informações privilegiadas que ela tem, é o de escolher exatamente um outro “rejeitável” platonicamente interessado por Sheba, e é com esta e outras situações que – mesmo que não o pretendesse – o filme acaba por retratar uma teia de transferências onde não só se busca algo já vivido (o suposto passado edípico de todos nós, apaixonados que teríamos sido por nossos genitores de sexo oposto, e rivais dos genitores do mesmo sexo que o nosso), mas também algo não vivido, ou seja, as lacunas: o que faltou em nossas expectativas, ainda que inconscientemente, e que nos move para buscas de encontros e “completudes” que sofrem trapaças da sorte e são roídos pelas traças da paixão. Como analistas selvagens que se deixam seduzir pelo “amor de transferência”, acredita-se, muito frequentemente, mais nas máscaras do que nos rostos. Já o filme atirou no que pretendeu ver e acertou (em parte) no que não parece nem ter visto e que não pôde privilegiar, favorecendo tipificações reducionistas às quais só magníficas atrizes escapam.
# NOTAS SOBRE UM ESCÂNDALO (NOTES ON A SCANDAL)
Inglaterra, 2006
Direção: RICHARD EYRE
Roteiro: PATRICK MARBER, baseado em romance de ZOE HELLER
Fotografia: CHRIS MENGES
Montagem: JOHN BLOOM
Música: PHILIP GLASS
Elenco: JUDI DENCH, CATE BLANCHETT, BILLY NIGHY, ANDREW SIMPSON
Duração: 92 minutos
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