Críticas


PELE, A

De: STEVEN SHAINBERG
Com: NICOLE KIDMAN, ROBERT DOWNEY JR., TY BURREL
13.03.2007
Por Luiz Fernando Gallego
NO LABIRINTO DA FERA

A palavra Fur, do título original de A Pele, seria mais propriamente traduzida por ‘pelo’, já que o termo inglês se refere a peles de animais - e também, por extensão, aos tradicionais casacos feitos com peles daqueles com pelos volumosos. Pode ter ainda a conotação de ‘crosta’ - e poderíamos até pensar em um metafórico ‘escudo’ relativo a inclinações ocultas, coisa que o filme aborda. Se todas essas possíveis equivalências encontram referências no roteiro e em imagens do filme, nenhuma teria o mesmo (já pequeno) apelo comercial da opção A Pele, que, afinal, se mostra satisfatório, mesmo que sem a polissemia de Fur.



O subtítulo original é uma (honesta) defesa prévia: trata-se de um “retrato imaginário” de Diane Arbus, fotógrafa conhecida por ter voltado suas lentes para corpos excluídos dos padrões estéticos habituais: anões, gigantes acromegálicos, drag queens, deficientes intelectuais, doentes psiquiátricos crônicos – mas também para pessoas “normais” com certo grau de bizarrice no modo de se apresentar, de se maquiar e/ou de se vestir (e também de se despir, como os nudistas).



Uma antiga questão retorna sempre que a criação ficcional se utiliza de uma personalidade que de fato existiu. Aceitamos com mais facilidade o que Shakespeare inventou, inspirando-se vagamente no rei da Escócia do século XI, Macbeth, que viveu tão distante dos dias de hoje, para criar um ditador assassino sem limites. Para não falar dos mais ancestrais Marco Antonio e Cleópatra – e mesmo de alguns reis que haviam vivido recentemente (para aquela época), como Henrique VIII, pai da Elizabeth que ainda governava quando o bardo encenou boa parte de suas peças iniciais.



Já por outro lado, cobra-se, especialmente do cinema com sua aparência de realidade “documental”, que eventos recentes, tais como as reações da atual Elizabeth II à morte da ex-nora, mesmo que com detalhes inventados por roteiristas hábeis (A Rainha, de Stephen Frears), mantenham vínculos bastante plausíveis com o que experimentamos como “verdade” ou “realidade”. Nosso “Cazuza” nas telas tinha que ser bem parecido com o Cazuza real de nossa memória recente e de fotos acessíveis em capas de discos, revistas e sites. E Forest Whitaker precisa ficar mais negro para “convencer” como o mais verdadeiramente macbethiano do que o real Macbeth, Idi Amin Dada, em O Ultimo Rei da Escócia.



Em relação à vida real da fotógrafa Arbus (1923-1971) e ao que motivava suas escolhas pouco habituais de “modelos” ainda na década de 1950, surgiram diversas críticas, especialmente por parte de artistas que trabalham com fotografia, como se o diretor Steven Shainberg e a roteirista Erin Cressida Wilson houvessem proposto uma hipótese “explicativa” para os interesses dos registros fotográficos de Diane. É verdade que a dupla desenvolveu a história de uma moça de família "sufocada" pela estabilidade burguesa, casada com um fotógrafo de moda, mas que, por um encontro fortuito com um vizinho misterioso, passa a se interessar pelo “lado B” mais oculto das possibilidades humanas, voltando suas lentes para deformidades, monstruosidades, bizarrices - freaks - ainda hoje evitados por nosso olhar (que, no entanto, não deixa de lado a curiosidade quando "surge" uma oportunidade).



Mas se o espectador aceitar não só o subtítulo, mas as enfáticas advertências dos letreiros iniciais, ele poderá apreciar uma trajetória insólita sobre a fascinação de todos nós – ou, no mínimo, sobre nossa curiosidade – pelo inusitado, pelo estranho, pelo diferente, que também é humano, ainda que fora das formas comuns com as quais tendemos a nos identificar.



Os letreiros mencionados na abertura do filme dizem que se trata de “um tributo” à verdadeira Arbus, “um filme que inventa personagens e situações que vão além da realidade”, não sendo uma “biografia histórica”. Seguindo tal proposta, a platéia pode se deixar cativar com a narrativa que, visualmente, consegue provocar vários estranhamentos. E também com o enredo que, mais do que da real Diane Arbus, fala de aspectos reprimidos pelos ideais de “bom gosto” padronizado e pelas máscaras sociais. No filme, o que as máscaras do tal vizinho ocultam é o aspecto grotesco de um ser humano cujo semblante, assim como toda a pele de seu corpo, estão encobertos por um capricho genético de crescimento anormal de pelos, o que o aproxima claramente do “príncipe” transformado em “fera” do conto A Bela e a Fera.



O voyeurismo do cinéfilo (e do humano, em geral) é confrontado com a fascinação (geralmente negada) pelo “feio”, pelo bizarro, pelo que nos causa repúdio, mas que, no entanto, não deixa de ser “familiar” – um pouco como no conceito do Unheimlich freudiano, o desconhecido que é conhecido, o que é atraente, mas cuja atração nos soa repugnante e culpada: o terrorífico, o "sinistro", o insólito.



Podemos entender as críticas às referências óbvias (e insistentes) que vão além da já citada analogia com a “Fera” do conto de Madame Leprince de Beaumont que Cocteau filmou em 1946. Sem dúvida, temos uma atualização do encontro de aspectos aparentemente “bestiais” do que também é humano com uma "bela" que vinha se protegendo, ainda que desconfortavelmente, de seus impulsos menos "aceitáveis".



Mas também há uma pletora de sugestões para uma espécie de “Alice” adentrando num terreno que não é exatamente um “País das Maravilhas”, mas pode lembrar mais a travessia de um espelho deformante - ou revelador. Com direito a coelhos brancos e passagens para um mundo paralelo que fica tão longe e tão perto: basta procurar com um olhar despudoradamente perscrutador que será encontrado.



Mais até do que com a “Alice” original de Lewis Carrol, parece haver algumas coisas da versão Disney com maçanetas estranhas de portas esdrúxulas e a transformação em piscina interna do que seria o rio criado pelas lágrimas da Alice quando aumentara de tamanho (gigantesca) - e que quase afoga a Alice quando é minimizada (“anã”). A aproximação é deixada óbvia com a citação explícita: em algum momento o livro de Carrol está sendo lido para uma das filhas da fotógrafa. Com esta mistura de referências reais e fantásticas, A Pele pode até ser aproximado ao recente Labirinto do Fauno que apresentou uma versão “conto de fadas para adultos” sobre o fascismo espanhol da ditadura franquista.



Sem ser exibicionista, a fotografia de Bill Pope é geralmente adequada aos propósitos do enredo e faz jus à profissão da personagem central. Muitos enquadramentos são um tanto estetizados, mas cumprem a função de criar uma ambiência oniróide próxima à do “mundo real”. A música, algo plilipglassiana também colabora eficazmente com o clima pretendido. Mas, acima de tudo, são os desempenhos dos atores que mantêm o interesse - ainda que a metragem se alongue um pouco além do necessário e que, perto do final, o filme sofra uma perda do ritmo – ritmo que já não se submetia ao tom apressado que se tornou quase obrigatório no que chega às salas comerciais. E certamente sem o nome de Nicole Kidman encabeçando o elenco, este filme teria enorme dificuldade de exibição.



Mais do que com o nome, a atriz entra com a cara, coragem e competência crescente que vem demonstrando de alguns anos para cá, alternando projetos-pipoca (A Feiticeira, 2005) com tentativas ousadas e arriscadas, mesmo que nem sempre totalmente bem-sucedidas - como neste caso ou no do desconcertante roteiro do famoso parceiro de Buñuel, Jean-Claude Carrière, para Reencarnação, de 2004. Ainda é preferível tê-la nesta inquietação a vê-la conformada a um limbo de produções rotineiras.



Robert Downey Jr. assume um papel muito difícil onde quase não entra com a cara, mas que exige muita coragem ao enfrentar o grotesco sem meios termos - e chama a atenção o uso que faz da voz, instrumento com o qual consegue uma performance virtuosística. Seria injusto não mencionar que os coadjuvantes nos papéis dos parentes de ‘Diane’ - especialmente o “marido” Ty Burrel – estão excelentes.



A estrutura de um longo falshback central com prólogo e epílogo numa colônia de naturistas é banal, servindo em grande parte como “gancho” para aludir às muitas fotos de nudistas da verdadeira Diane Arbus e criar uma (frustrante) expectativa quanto a uma cena de nudez de Nicole Kidman.



De um modo geral, as obviedades que estão sendo criticadas no enredo e mesmo no clima visual – que chega a um kitsch pretendido – podem se constituir nos mesmos pontos de interesse que o filme pode provocar, desde que se aceite a proposta da “biografia inventada” de alguém que de fato existiu – e de preferência como pretexto para desnudar couraças defensivas de peles ou de pelos. Se não é um filme totalmente “realizado”, ainda é mais atraente do que roteiros e filmes “de fórmula”; e pode fascinar pelos desempenhos, pelas analogias fantásticas (ainda que óbvias) e, de quebra, despertar interesse para a verdadeira Diane Arbus, sua biografia real e - principalmente - para sua obra.



# A PELE (FUR: AN IMAGINARY PORTRAIT OF DIANE ARBUS)

EUA, 2006

Direção: STEVEN SHAINBERG

Roteiro: ERIN CRESSIDA WILSON

Fotografia: BILL POPE

Montagem: KEIKO DEGUCHI, KRISTINA BODEN

Música: CARTER BURWELL

Figurinos: MARK BRIDGES

Direção de Arte: NICK RALBOVSKY

Elenco: NICOLE KIDMAN, ROBERT DOWNEY JR., TY BURREL, HARRIS YULIN

Duração: 121 minutos

Site:: http://www.furmovie.com/

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