Em geral, não temos, no Brasil, uma noção muito clara do que foram os anos pós-II Guerra na Alemanha repartida em setores americano, inglês, francês e soviético. Nem mesmo sobre o que seria o cotidiano no período da "guerra fria" que culminou na construção do "muro de Berlim", especialmente do "lado de lá", na esfera soviética. Alguns filmes americanos, já nos anos 1960, foram feitos como propaganda anticomunista, enfocando dramas e tragédias de compatriotas, parentes e amigos separados pela insensatez humana - e por um muro infame. Alguns tantos livros de espionagem aproveitaram tal cenário e foram levados às telas com resultados irregulares. Mas o que terá sido, de fato, a vida em um país arrasado belicamente, emergindo do lodo nazista e da destruição, sofrendo tamanha fratura política, ao ponto de ter fronteiras físicas separando seu povo?
Alguns filmes mais recentes têm procurado refletir sobre o país mais atual, como Adeus, Lênin - que especulava com bom-humor sobre o trauma da re-união das “duas Alemanhas” - e Eudkators, que problematizou os caminhos de uma esquerda jovem que se pretenda ativista, mesmo depois da queda do muro e de tantas decepções com os descaminhos de nações e governos comunistas.
Já os filmes que muito eventualmente nos chegam sobre o período anterior à construção do muro de Berlim não têm sido muitos nem tão esclarecedores. A Promessa, de Margarethe von Trotta, feito há mais de dez anos, só foi lançado por aqui em VHS. Recebeu prêmios em seu país, mas não deixava claras as intenções do que a cineasta pretendeu retratar – talvez, em parte, por nossa falta de vivência mais próxima do drama coletivo que levava a tragédias individuais.
E ainda não é com Um Amor além do Muro que o espectador brasileiro se sentirá tão mais ambientado com o que foram aqueles dias de tensão máxima entre a ex-URRS e os EUA, em pleno olho do furacão de uma cidade e um país partidos. O filme traz um acúmulo de situações sobre um grupo de jovens freqüentadores de uma boate Der Rote Kakadu (A Cacatua Vermelha) – que também é o título original do filme: música “quadrada” versus rock and roll, sexo casual e compromisso amoroso, ideais de esquerda e fascinação capitalista, triângulos amorosos, mentiras, dissimulações e traições (políticas e afetivas), além de espionagem pela STASI, o serviço secreto da Alemanha Oriental.
O filme parte de Siggi, um jovem interiorano que se mudou recentemente para Dresden e que pretende ser cenógrafo. Ele se apaixona por Luise, casada com Wolle, ambos trabalhando como operários - sendo que ela também escreve poemas. Nem sempre se consegue acompanhar o que está se passando além das aparências, e mais ainda quanto ao que pensam (e o que representam?) tantos personagens. Luise é a mais transparente e um pouco mais trabalhada, o que permite a melhor interpretação: Jessica Schwarz é uma atriz tão discreta quanto competente em transmitir sutilezas - e em quem se deve prestar atenção. Anti-nazista ferrenha, Luise se diz totalmente contrária à idéia de ir viver na Alemanha Ocidental onde, segundo ela comenta, ex-nazistas estão vivendo e mandando. Não aceita os antiquados dirigentes soviéticos ou os alemães a eles submissos; acredita que uma geração mais jovem no poder defenderá melhor os ideais socialistas. Mas talvez, dentre seus amigos, só ela pense assim... Os demais personagens quase não passam de "tipos";
É uma pena que o filme traga a sensação de que há um excesso de idas e vindas sobre os quase mesmos (e muitos) pontos que pretendeu abordar ao longo de seus 128 minutos. O desfecho até consegue ser algo comovente, ainda que em boa parte pela situação em si mesma da crise política que leva à dramática construção do muro. Nesse vai-e-vem, muitas vezes o atabalhoado roteiro - que a edição não ajuda - parece se desviar excessivamente para o clima doce-amargo nostálgico que George Lucas inaugurou em 1973 com American Graffiti (Loucuras de Verão) – nostalgia que aqui soa bem mais amarga – ou mesmo azeda - do que doce. Outras vezes é o triângulo amoroso Siggi-Luise-Wolle que domina a cena. Ou algumas trapalhadas por conta de uma certa ingenuidade de Siggi. E quando o desfecho político domina o filme, os ingredientes parecem insatisfatoriamente articulados.
Pode ser uma ilação arriscada e instrumentada por nossa falta de vivência sobre aqueles tempos naquele país, mas cabe a curiosidade sobre a ambientação do filme em Dresden em parte reconstruída - mas ainda cheia de ruínas, cidade que sofreu um severo (e polêmico) bombardeio pelas forças aliadas a ponto de ser considerada “a Hiroshima germânica”. Na partilha, Dresden ficou na ex-“Alemanha do Leste”. Outra questão é que o enredo é ambientado de forma tal que o filme se comporta como se “profetizasse” fatos já acontecidos, deixando a impressão de que está “chutando o cachorro morto” das decepçoes com a ex-República Democrática Alemã e com o comunismo soviético.
# UM AMOR ALÉM DO MURO (DER ROTE KAKADU)
Alemanha, 2006
Direção: DOMINIK GRAF
Roteiro: KARIN ASTRÖM, MICHAEL KLIER
Fotografia: BENEDICT NEUENFELS
Montagem: CHRISTEL SUCKOW
Música: DIETER SCHLIEP
Elenco: MAX RIEMELT, JESSICA SCHWARZ, RONALD ZEHRFELD
Duração: 128 minutos