O mais recente filme de Sofia Coppola é bem interessante cinematograficamente, competente em sua narrativa visual bem articulada, conseguindo falar sobre tédio sem ser tedioso. Parece ter atingido o que pretendia na polêmica opção de colocar Maria Antonieta, a personagem-título, como uma espécie de “guia” - com quem o espectador possa se identificar - para demonstrar a alienação do poder através da estereotipia dos rituais de etiqueta e da “liturgia” que envolve os poderosos com uma aura tal que “permite” que apareçam como semi-deuses, muito acima do comum dos mortais.
Se estes “recursos de imagem” terão sido muito usados no absolutismo monárquico, o que mudou (?) foi tão-somente uma atualização dos figurinos na criação de imagens marqueteiras com as quais são “vendidos” os políticos, tal como se fossem “produtos” a serem consumidos: candidatos que serão escolhidos ou não nas urnas republicanas. Eleitos, depois que “chegam lá”, os governantes têm direito a fórum diferenciado, imunidades e privilégios – além de um nefasto corporativismo que extrapola a idéia prosaica de mera “ação entre amigos” para se configurar como uma “irmandade” perversa de compromissos mútuos à moda mafiosa.
Por aqui, temos o exemplo recente de um presidente que tentava um jogo de aparências midiáticas que durou pouco e que acabou (?) deposto por impeachment; encerrada sua “punição”, retorna ao Senado dizendo que foi injustiçado e seus coleguinhas em exercício, seus antigos juízes, praticamente lhe pedem desculpas. Fica claro que não foi deposto exatamente por seus erros, mas porque concentrou excessivamente o “direito de errar”, fazendo-o apenas em beneficio próprio - e de sua “famiglia” de mais chegados. No mais, os rapapés verbais permanecem em vocativos como “Vossa Excelência” enquanto fazem de conta que travam batalhas verdadeiras pela justiça, em prol do povo e contra os desmandos nos infindáveis circos de CPIs...
Luís XVI também foi deposto, como se sabe – e sofreu um “impedimento” muito mais drástico e radical quando cortaram sua cabeça fora (mas o filme de Sofia Coppola nos poupa destas cenas desagradáveis). O Rei chega a dizer que não quer fugir numa frase que soa estranha quando se sabe da (posterior) frustrada tentativa de escapar e que foi tema em pano-de-fundo para Casanova e a Revolução (La Nuit de Varennes), obra-prima de Ettore Scola.
Anedotas de veracidade hoje contestada podem fazer crer que o rei acabou perdendo a cabeça porque sua cara-metade, a “austríaca” Maria Antonieta, era tão alienada do sofrimento do povão que perguntava por que não comiam croissants ou brioches quando não tinham nem pãozinho francês na mesa. O mito em torno da frase que Maria Antonieta disse-não-disse deixava de lado que o problema era que faltava pão – e faltava pra valer. No filme de Sofia Coppola, baseado em uma biografia revisionista de Antonia Fraser, a rainha diz, com ar levemente consternado, que jamais pronunciaria uma coisa destas. Pode ter sido mesmo intriga, fofoca, maledicência a que os poderosos sempre se arriscam.
Além disso, no filme Maria Antonieta ela aparece interessada nos escritos de Rousseau, prefere o pavilhão do Petit Trianon à formalidade excessiva de Versailles - ainda que o pavilhão esteja construído nos mesmos enormes domínios - e parece procurar uma identificação (obviamente fake) com a vida mais simples dos pobres (porém felizes?) vestindo-se de camponesa em representações teatrais privadas – e isto, por exemplo, não é invencionice do roteiro: sabe-se que houve mesmo este modismo entre os aristocratas da época que curtiam aparecer em palcos particulares com vestimentas campesinas nas chamadas encenações “pastorais”.
A questão que incomoda é a seleção de fatos históricos e ficcionais feita pela diretora e roteirista, que recorta uma personagem tal como ela quis idealizar. Não se trata de contestar o privilégio da ficção quando recria personalidades que existem ou existiram de fato, seja no passado, desde Shakespeare e seus reis Tudor ou York, seja no filme recente de Stephen Frears que trata da atual Rainha Elizabeth II, ainda viva e reinante. A questão é que Sofia Coppola, ao se interessar por um retrato da vida íntima da jovem princesa austríaca na corte francesa não deixou (e seria bem mais ousado se deixasse) totalmente de fora o furacão político que levaria à queda da Bastilha e deposição do casal real - e o fez através de escolhas no mínimo singelas, senão perversas, de alguns pouquíssimos eventos que teriam contribuído para a derrocada dos Bourbons.
A platéia só vê – e vê mais de uma vez - a ajuda financeira da França aos revolucionários norte-americanos em luta contra a coroa inglesa. Para manter tal ajuda, a solução dada pelo jovem rei que aparece manietado por seus ministros é a de sempre: aumentar os impostos. Não se menciona nenhum outro evento muito mais significativo na crise que culminou na Revolução Francesa: tal como foram “os Estados Gerais” e os acordos constitucionais que Luís XVI assinou mas não cumpriu - para ficar em apenas dois dentre tantos exemplos. Nem mesmo fica claro que ele já subiu ao trono com as finanças dilapidadas e em séria crise. Não foi porque teria sido “bonzinho” (por critérios do senso comum atual) ao colaborar com os independentistas americanos que o erário francês foi para o brejo como o filme deixa mais do que sugerido.
É curioso que, ao mesmo tempo, Sofia Coppola esteja nos oferecendo um retrato tão intenso da alienação em que o núcleo do poder acaba por se transformar – ou já ser - alienado e alienante em si mesmo. A etiqueta cheia de rapapés exigida à jovem adolescente recém-chegada à França e que é imposta pela caricatural Condessa de Noialles (e Judy Davis colabora com o estereótipo de seu papel unidimensional) é ridicularizada de um modo tal que a simpatia da platéia pela mocinha Antonieta só aumenta a cada cena dos “rituais”. É como se Antonieta fosse um “espírito livre”, sem nada a ver com aquilo tudo, aprisionada num casamento que é mais uma aliança política onde seu papel é apenas o de procriar, dar “à nação” um filho homem que seja o novo delfim, perpetuando a dinastia – outro aspecto enfatizado e que aparece “injusto” ao olhar atual: pobrezinha, não casou “por amor”...
Outra questão intrigante é que desde sua chegada à corte francesa até serem expulsos de Versalhes muitos anos se passaram - mas os atores Kirsten Dunst (ótima dentro do que se lhe pede) e Jason Schwartzman (com eterna cara de menino bobo) - e especialmente ele – permanecem com aparência física (e psíquica) de adolescentes despreparados para governar: vítimas e jamais agentes ou cúmplices da mesma alienação que a diretora ridiculariza, como que culpabilizando “o sistema” pelo alto preço que o jovem – ma non troppo - casal real vai pagar mais tarde, depois que a sessão acaba. O filme se mostra excessivamente parcial e sedutor ao manter os atores com tal aspecto juvenil ao longo do que foram mais de quinze anos: a dupla já contava bem mais de trinta quando as coisas começaram a ficar pretas para o lado deles.
Por tratar tão enfaticamente da alienação enclausurada em um ambiente que deve ter inspirado o palácio barroco de Ano Passado em Marienbad, (filme que foi estudado também sob o ângulo da alienação), por este seu melhor aspecto, o filme de Sofia poderia (ou deveria) se chamar Versailles. Um bom título em português, numa tradução livre, mas de grande poder analógico seria Brasília.
Cinematograficamente, temos um resultado até mesmo fascinante e envolvente, prova de competência formal da cineasta. Historicamente, não passa de uma salada mais do que questionável na escolha tendenciosa dos ingredientes. Ideologicamente, o que fica é, no mínimo, ambíguo: os protagonistas são quase "bonzinhos", ao mesmo tempo em que o "sistema" de alienação é perverso, se auto-alimenta e acaba por se revelar autofágico – o que pode ter sido o destino do filme e de sua autora. Talvez Sofia Coppola, em sua ambiciosa e provocativa intenção evidente de chocar e surpreender ao propor uma nova imagem um tanto diversa da visão corrente e popular de tais personagens históricos, tenha acabado, ela também, se aprisionando na mesma bolha de luxo de onde não se via o povo nem de longe, privilegiando (talvez) uma visão “feminista” inadequada porque mesclando duas épocas com alguns critérios e postulados comportamentais muito diferentes, tal como na mistura que fez de música da época com sons de música contemporânea na trilha sonora. O resultado é visualmente bonito e atraente, mas confuso e mais do que polêmico. Se não é para vaiar, dá para entender porque chegou a ser vaiado: o que se vê na tela é um retrato híbrido de “Sofia Antonieta”.
# MARIA ANTONIETA (MARIE ANTOINETTE)
JAPÃO/FRANÇA/EUA, 2006
Direção e Roteiro: SOFIA COPPOLA
Produção: SOFIA COPPOLA E ROSS KATZ
Fotografia: LANCE ACORD
Edição: SARAH FLACK
Música: BOW WOW WOW, THE CURE, NEW ORDER, STROKES, GANG OF FOUR, AIR, ETC.
Elenco: KIRSTEN DUNST, JASON SCHWARTZMAN, JUDY DAVIS, MARIANE FAITHFULL, RIP TORN, ASIA ARGENTO, JAMIE DORNAN
Duração: 123 min.