Críticas


A ROSA AZUL DE NOVALIS

De: GUSTAVO VINAGRE e RODRIGO CARNEIRO
Com: MARCELO DIORIO
18.12.2019
Por Maria Caú
Quase um manifesto contra a hipocrisia da sociedade brasileira

O mais vivo e pulsante (e a escolha dessa palavra é um cálculo de precisão) longa-metragem da principal mostra competitiva do festival de Tirandentes 2019, A rosa azul de Novalis é, de fato, a jornada de um ânus (sejamos mais diretos, refletindo a contundência do filme: um cu) e do homem que o anima, Marcelo Diorio, realíssimo em seu processo de autoficcionalização. Com uma personalidade de contornos esfuziantes, Marcelo interpela os diretores e a equipe de produção num monólogo em que aborda suas memórias, incluindo passagens desconcertantes ou potencialmente traumáticas, assim como sua relação com a literatura, o cinema e um misticismo difuso que mistura astrologia, quiromancia, vidas passadas. Em realidade, o protagonista é tão brilhante na construção de uma personalidade decadentista, um Oscar Wilde tropical com deficiência de vitamina D, que é difícil acreditar que se trata de seu primeiríssimo trabalho como ator, um desempenho que toca em temas necessários e de grande potência política no momento atual, como a sorofobia e a interdição social em relação ao prazer anal. A atuação prismática expressa vulnerabilidade sem perder o completo domínio da mise-en-scène, de forma que Marcelo, desnudado de muitas formas, jamais se conforma ao papel de objeto do olhar, sendo aquele que de alguma forma o direciona. O que se estabelece é uma complexa rede de provocações e olhares entre realizadores, protagonista e público, num jogo consensual, apesar de arriscado em sua ousadia. “Tenho uma relação mórbida com essa coisa de me expor”, declara ele, ao mesmo tempo em que reivindica o livre exercício dessa morbidez.

Nesse cenário, surgem diferentes alegorias visuais que experimentam com artifícios linguísticos variados (um chroma key facial, uma sequência precisa de sexo explícito, a materialização da rosa etérea que dá título à obra), retomando e aprofundando conceitos que já estavam presentes do ponto de vista do discurso. Numa das melhores passagens, que se liga ao cinema cybercarnal de David Cronenberg, Marcelo arranca os cabos (as entranhas) de um carro que é em si a encarnação mecânica da sua muito dúbia relação com os homens da família: o pai e o irmão heterossexual. Os belos planos que abrem e fecham o filme, ambos quadros em que o cu de Marcelo é o centro de convergência do olhar, são quase um manifesto contra a hipocrisia da sociedade brasileira, esse conservadorismo farsante que retornou de seu esconderijo com força e violência nos últimos anos.

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