Críticas


BOM PASTOR, O

De: ROBERT DE NIRO
Com: MATT DAMON, ANGELINA JOLIE, ROBERT DE NIRO
26.03.2007
Por Luiz Fernando Gallego
O ELOGIO DA TRAIÇÃO

Irônico (e quase blasfemo para crentes), o título O Bom Pastor remete à parábola auto-referente de Jesus, segundo a qual, para procurar uma ovelha perdida, ele deixaria as outras que já estão no rebanho - e regozija-se com a ovelha que for resgatada para o aprisco da salvação.



É assim que o personagem Edward Wilson, vivido por Matt Damon no filme dirigido por Robert De Niro, funciona: com a absoluta certeza (paranóica, no caso) de quem sabe - sem a menor dúvida - onde está o certo e onde está o errado, o que é a verdade, o que é melhor e o que deve ser feito para proteger seu “aprisco” - os EUA - dos “visitantes” negros, judeus, italianos, irlandeses – como ele os chama em uma das poucas cenas em que fala algo mais “pessoal”. O silêncio e economia de palavras é sua marca registrada. Mas a instrumentação de suas ações vai ficando clara à medida que ele vai “perdendo sua alma”, como no presságio de um antigo professor.



A trama percorre vinte e dois anos, desde uma certa “pré-história” da CIA, até 1961, data e evento escolhidos como núcleo do enredo: a frustrada invasão da Baía dos Porcos em Cuba. É sempre a partir deste momento - colocado como ação “atual” – que o filme vai diversas vezes ao passado mais anterior: seja a 1939, quando a questão era o nazismo ainda ascendente; seja a 1945, no início da guerra fria; seja aos anos 1950, com ações intervencionistas já nem tão disfarçadas em outros países - mas sempre retornando ao que é o momento “presente” do enredo nas ações contra Cuba pós-Fidel Castro, os antecedentes, as conseqüências e – talvez – motivos da fracassada invasão. Tudo isto, com o foco mais voltado para as vidas dos personagens centrais do que para questões políticas propriamente.



A opção do roteiro de Eric North (de Munique) aponta mais para uma história moral do que para um filme de ação ou mesmo de reconstituição histórica – ainda que alguns muitos personagens possam ser remetidos a pessoas reais que foram da CIA, ou de outras organizações de espionagem e contra-espionagem, traidores e traídos. Não chega a ser uma aproximação nova em filmes do gênero, pelo menos desde que os romances de John le Carré passaram às telas.



A ambição do diretor De Niro e do roteirista parece ter sido ainda maior, enfrentando um amplo painel com muitos personagens em uma bem longa metragem: aproximar-se da saga de Francis Ford Coppola (não por acaso um dos produtores-executivos deste filme) no ciclo O Poderoso Chefão; ou mesmo do épico Era uma vez na América, de Sergio Leone - projetos dos quais De Niro participou como ator em sua melhor fase. Com a ressalva que O Bom Pastor não é tão bem sucedido quanto seus modelos mais ou menos explícitos. Da série The Godfather chega a fazer citações em tomadas de cena, como quando os personagens de Damon e De Niro estão conversando numa sala e a esposa do primeiro – Angelia Jolie – olha, de soslaio, de outro cômodo. Quase como Diane Keaton na cena final do primeiro Chefão. Fala-se em crença na instituição família e em amor pela América, enquanto Matt Damon assume a expresão figée de Pacino no final do Chefão-II.



A poker face de Damon já serviu bem ao seu papel anterior (Os Infiltrados) e chega ao paroxismo na quase “não-interpretação” de um homem que quase nunca sorri – e quando o faz, parece desconcertado. Andando pelas ruas, sempre de sobretudo e chapéu, chega a lembrar os homens repetidos com vestimenta parecida dos quadros de Magritte – ocultando mais do que revelando, mas escondidos atrás de - ou se misturando a - elementos insólitos, dentro do espírito surrealista. Só que aqui, tais questões metafísicas não são objeto de consideração: Edward Wilson aparece como uma tipificação do “homem comum” norte-americano branco, anglo-saxão, com o “diferencial” de pertencer a uma suposta elite que se cria a partir de sociedades secretas - de onde teriam saído inúmeros presidentes, republicanos ou democratas.



O nome da irmandade no filme é “Caveira e Ossos”, com o mesmo símbolo das bandeiras piratas. No ritual de iniciação são instados a confessarem segredos íntimos totalmente despidos - depois de lutarem da mesma forma em um ringue de lama onde outros, de cima, urinam. Em jantares anuais fazem números amadores em palco de hotéis semi-travestidos. Wilson é convidado a fazer parte desta irmandade quando está fazendo um papel feminino numa encenação universitária. Machismo, misoginia, relação com a virilidade e com a sexualidade em geral um tanto complicada...



As relações de Wilson com as mulheres sofrem inibições: ele se envolve afetuosamente (ao que parece) com uma moça totalmente deficiente auditiva, mas se afasta dela depois que engravida uma moça “de família” e pertencente a uma família com colegas da tal irmandade. E esta, praticamente o havia estuprado (daí o papel ter ido para Angelina Jolie?). A possível associação com a lembrança da namorada surda o levará a outro envolvimento do qual retira a “lição” (repetida várias vezes durante o filme) de que não se deve confiar em ninguém e nem mesmo – e principalmente – nos sentimentos: só atrapalham. Afinal, desde criança, o personagem já havia se mostrado capaz de ocultar um tanto friamente, ainda que por impulso, a carta de deixada por um suicida!



Apesar do excesso de digressões e de situações encadeadas através de elipses que num primeiro momento nem sempre deixam claro para o espectador o que está se passando, o interesse se mantém ao longo dos 167 minutos de projeção. Em parte pela curiosidade das tramas de traições, mas também pelos desempenhos dos inúmeros atores competentes do elenco – ainda que em aparições mais ou menos breves. Por exemplo, com mais oportunidades, Michael Gambon está excelente enquanto John Turturro e Oleg Stefan servem aos seus papéis de modo irrepreensível. Mas infelizmente, apenas em cenas isoladas encontramos o sumido Joe Pesci – quase que reconhecido apenas pela voz - e Timothy Hutton. Os outros todos, incluindo De Niro, se mostram em boa forma - como costuma acontecer em filmes dirigidos por atores.



Também contribui bastante o cuidado de De Niro na mise-em-scène: tomadas de Matt Damon emoldurado e algo “reduzido” por prédios e paredes, andando quase curvado, como se fosse um “Senhor Qualquer Um”, ajudam a criar o clima do filme, para o qual também colaboram a direção de arte, cenários, figurinos e mais ainda, a fotografia sombria de Robert Richardson assim como a trilha sonora (como está virando moda, “philipglassiana”) de Bruce Fowler (Colateral) e do brasileiro Marcelo Zarvos (Hollywoodland - Bastidores da Fama). O recusrso musical de células sonoras repetidas insistentemente mostra-se, desta vez, adequado ao estilo da narrativa e da história narrada.



Se não decola em todas as direções envolvidas (os aspectos históricos e mesmo políticos acabam menos interessantes), O Bom Pastor pode ser apreciado como uma fábula niilista e de desencanto sobre os seres que perderam suas almas em prol de uma defesa amoral de uma ideologia que acaba perpetrando o elogio da traição, negando exatamente os supostos valores morais, éticos e religiosos que pretende estar defendendo. Se não tem a dimensão do absurdo beckettiano, não deixa de demonstrar, mais uma vez, as armadilhas para os que se pretendem donos da verdade, moral e bons costumes, sem sombra nem espaço para dúvidas éticas ou questões teóricas sobre princípios quando demandam escolhas no arriscado e incerto terreno da ação prática.



# O BOM PASTOR (THE GOOD SHEPHERD)

EUA, 2006

Direção: ROBERT DE NIRO

Roteiro: ERIC ROTH

Produção: ROBERT DE NIRO, JAMES ROBINSON, JANE ROSENTHAL

Fotografia: ROBERT RICHARDSON

Edição: TARIQ ANWAR

Música: BRUCE FOWLER, MARCELO ZARVOS

Elenco: MATT DAMON, ANGELINA JOLIE, ROBERT DE NIRO, ALEC BALDWIN, BILLY CRUDUP, JOE PESCI

Duração: 167 min.

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