Os americanos chamam de “biopic” (bio- de biografia e -pic de “pictures”, ou seja, filmes), um gênero que está sempre em alta nas premiações de desempenhos que reproduzem com maior ou menor fidelidade, inclusive física, outros artistas. Para resultarem filmes populares e rentábeis, o(a) biografado(a) deve ser razoavelmente conhecido(a) até hoje (no caso de ter feito sucesso há muito tempo). E sua vida deve propiciar que o roteiro explore (e até amplie) lances dramáticos ou melodramáticos vividos pela personalidade retratada.
Ano passado a tal dita biopic de Freddy Mercury deu prêmios (questionáveis) ao ator que imitou mais ou menos bem os gestos exagerados do Freddy. O filme não ajudava quase nada. Este ano, seria a vez do Taron Egerton reproduzir o feito com sua recriação muito boa de Elton John. O filme ajudava um pouco mais, mas havia (há) um Joaquin Phoenix como Coringa no meio do caminho. Mais sorte está dando Renée Zellweger, atriz que desperta alguma antipatia em parte do público, e que chamou mais atenção nos últimos tempos bem menos pelos filmes em que esteve do que por uma plástica que deixou seu rosto muito diferente do que era. Mas ela parece recorrer à personagem Bridget Jones sempre que a popularidade baixa – e não foi diferente há dois anos atrás. Mas a gente conhece alguém que tenha ido ver a terceira sequência da franquia Bridget Jones?
Talvez as mesmas pessoas que não foram ver O Bebê de Bridget Jones (2017) tenham resistência em ir ver a performance de Renée em Judy: muito além do arco-íris, pelo qual está sendo bastante premiada num ano com concorrentes menos histriônicas do que ela - e do que era Judy Garland. Mas, mesmo não tendo simpatia pela atriz, deveriam ir vê-la neste papel.
Também pode não atrair muita gente o nome de Judy Garland, já que esta morreu há cinquenta anos. Talvez possa ainda ser lembrada pelas novas gerações por ter sido a estrela de O Mágico de Oz (1939), filmado quando ela tinha 16 anos, ainda que tentando passar por 12 ou 13. O título brasileiro mencionando o arco-íris já é uma tentativa de ajudar o público a lembrar da canção emblemática do filme (e do repertório de Judy Garland), Over the Rainbow. Mas a Judy adulta não foi um nome tão popular no Brasil, a não ser, talvez, entre cinéfilos amantes de musicais como Meet me in St. Louis (Agora seremos felizes), de 1944. Apesar deste título em português, tudo sugere que Judy nunca foi lá muito feliz.
Praticamente entregue pela mãe, ainda pré-adolescente, ao estúdio da Metro Goldwyn Mayer, lá ela teria sido acostumada a pílulas para tirar a fome (e evitar que engordasse), pílulas para se manter alerta na hora de filmar (ainda que cansada), e pílulas para dormir (quando não conseguia pegar no sono, mas tinha que dormir para filmar no dia seguinte). Consta que ela morreu devido às pílulas, acidentalmente, mesmo que já houvesse tentado suicídio antes e mais de uma vez. Tentou também vários casamentos, mas parece que não foi lá bastante feliz em nenhum deles; também tentou vários namoros e casos com atores e cantores, uma listinha de nomes famosos na época, alguns bem lembrados até hoje.
Talvez no palco ela ficasse feliz? O filme sugere que sofria de stage fright, o início era sempre difícil, embora o histrionismo (que sua filha, Liza Minelli, também herdou) fizesse dela uma intérprete que se entregava exageradamente, arrebatadamente - e que arrebatava o público, especialmente o público gay que tinha uma queda por cantoras com entrega visceral nas suas interpretações: no Brasil, Dalva de Oliveira tinha este público cativo; Edith Piaf transpôs as fronteiras da França; um pouco menos do que a Piaf, talvez tenha sido assim também com Judy Garland (o filme tenta retratar isto através de um casal de fãs londrinos).
Vejam: histrionismo não é necessariamente um defeito e pode ser bem utilzado se houver talento além dele. Sozinho pode ficar patético, no pior sentido do termo. Mas Judy era talentosa. Bastante. Muito. Mesmo quando não jogava com a paixão transbordante. No documentário de Nelson Pereira dos Santos A Música segundo Tom Jobim (2012), "Insensatez" foi ouvida na versão em inglês em interpretação extremamente respeitosa de Judy para com a canção, tão dolorida e tão bossanovista. Muita gente ficou abismada com este clipe, incluindo quem escreve aqui. Não que não houvesse histrionismo, mas estava a serviço de cantar a música como ela precisa ser cantada, com uma senhora dor de cotovelo, alguns tons abaixo de shows em que Judy berrava e dançava e jogava os braços para cima, para os lados, para frente.
Se quiserem conferir: https://www.youtube.com/watch?v=XMaIXqBhOLM
Por um lado, pode parecer fácil macaquear uma cantora exacerbada em tudo, na vida e no palco, mas o risco de ficar neste patamar mais superficial (como o ator premiado pelo Oscar ano passado) é grande. Renée joga num nível mais alto. Talvez tenha um certo histrionismo e cacoetes faciais que deixam a gente em dúvida: seriam da Garland ou da Zellweger? Mas logo a gente se esquece disso e corre o risco é de ficar arrebatado, até porque Renée canta, ela mesma, algumas das mais famosas canções que Judy Garland interpretou. E que são ótimas. A atriz não faz feio cantando, pelo contrário.
O filme? Bem, o filme é mais uma biopic com as frequentes qualidades e defeitos do gênero, havendo um certo tom de exploitation da desgraça na vida de Judy Garland em seu último ano de vida, mas cabe sempre lembrar que toda a vida dela terá sido (quase sempre) uma desgraça.
Renée deve levar o Oscar ao qual Judy foi indicada duas vezes: como atriz principal em 1954 na segunda versão de Nasce uma estrela (perdeu para Grace Kelly, o que foi considerado uma das injustiças famosas da premiação); e, como coadjuvante, sem cantar nem fazer graça, no pesado drama de tribunal Julgamento em Nuremberg (1961). Judy tinha apenas duas cenas e em ambas ela esteve extraordinária. Ironia das ironias, quem levou o Oscar de atriz coadjuvante foi Rita Moreno, por um musical... E que musical! West Side Story. Bem, Rita cantando e dançando em "America" é de arrasar mesmo, mas a onda em que o musical se transformou, chegando a levar dez estatuetas, deve ter ajudado a prestarem mais atenção em Rita.
Quando foi chamada para Julgamento em Nuremberg, Judy não filmava desde Nasce uma estrela, sete anos antes; estava gorda e hesitou em aceitar o papel. Havia temor da produção de que ela não fosse pontual e que seu já mais do que óbvio problema com drogas atrapalhasse a filmagem. Mas nada disso aconteceu. Desta vez.
Houve mais dois filmes, o último em 1963, e, pelo que o filme Judy mostra, em 1968 a decadência parecia irreversível.