Não é bem porque tem fixação em bunda que Lourenço, o personagem vivido por Selton Mello em O Cheiro do Ralo, poderia ser visto como exemplo do que a psicanálise entende por “caráter anal”. Na verdade, o conceito “caráter anal” implica em uma série de características manifestas que seriam o avesso do avesso do avesso de inclinações latentes deixadas para trás. Em outras palavras, certos traços evidentes de determinadas personalidades poderiam ser algo que se formou como reação contrária, o oposto ao que teria sido o impulso original. Por exemplo, o temperamento ordeiro, organizado e ordenado seria, em sua origem, uma inclinação pela desordem, bagunça e sujeira ligadas à hipotética fase de “erotismo anal” infantil. Mas isto não quer dizer que as inclinações arcaicas da época em que criancinha pequena fica muito curiosa com - e interessada por - seu cocô vão sempre sofrer uma reversão ao seu oposto. Este seria o “caso” de Lourenço, um “caráter anal” tal e qual que permaneceu chafurdando na merda - como metáfora. Ou não.
Um suposto antigo prazer da criança pequena quando está na fase de ser educada para aprender a controlar os esfíncteres estaria em “segurar” para depois sentir o alívio de liberar o conteúdo intestinal. E isto pode, digamos, “evoluir” para - se transformar em – curtição com as alternâncias de retenção e liberação em outras áreas que não as das necessidades fisiológicas. Por exemplo, na relação com dinheiro. E dessa possível característica, Lourenço não escapa: comprador de objetos usados que pessoas em situações financeiras bem desconfortáveis vão tentar lhe vender, ele é capaz de ser “retentivo” com a grana cuidadosamente guardada, distribuída em várias caixinhas de charuto espalhadas, um pouquinho em cada uma - e cada uma escondida em diferentes gavetas. Com isso ele tenta dar impressão de que só tem aquelas notas disponíveis em uma determinada caixinha bem à mão, sobre a mesa – já que o cliente que quer vender algo não sabe das outras.
Mas se Lourenço elege um objeto de desejo, algo que ele quer muito, impulsiva e compulsivamente, torna-se capaz de “liberar geral” a merda do dinheiro guardadinho, abrir a tampa de todas as caixas e pagar valores absurdos por coisas que despertaram sua fissura de ter, de possuir – tal como acontece quando compra próteses para partes do corpo humano já fora de uso (ao que se supõe, pelo menos): uma perna mecânica, um olho de vidro... que ele vai dizer mais tarde que servem para “montar” seu “pai-frankenstein” num psicologismo barato do roteiro, aludindo a algo que poderia ser descrito em psicanalês-clichê como “ausência da figura paterna que se busca recriar ainda que monstruosamente e de forma coisificada” - ou seja, faltou-lhe o “nome-do-pai” no jargão lacaniano.
Lourenço não quer (não pode, não conseguiria) receber de graça a doação que uma garçonete calipígia (Paula Braun, enfrentando bem o papel) lhe faria: ele preferiria pagar para ver sua bunda, pela qual desenvolve fixação e obsessão – a ponto de nem saber o nome da moça (ela não passa de uma metonímia: “a bunda”) e de não perceber que outra garçonete, vista de frente (Alice Braga, em uma pontinha, mas sempre luminosa) não é a mesma que ele só reconhece pelo traseiro.
A relação dele com o uso do dinheiro que, em princípio, deveria ser um meio para se atingir um fim, aparece empobrecida, como se dinheiro fosse a coisa-em-si que mais interessa: o dinheiro pelo dinheiro e nem tanto para o que serve. E no “caso” de Lourenço serve para diminuir seus clientes e para estragar a paquera com a garçonete que já se mostrava toda derretida para o lado dele. Quando ele fala em pagar para ver sua bunda, para ela é como se conspurcasse a entrega amorosa e/ou sexual que ela estaria disposta a fazer, cheia de tesão nele, prestes a ceder ao cara aparentemente arrumadinho, de óculos, usando camisas LaCoste e lendo livros policiais cultuados que ela desconhece mas idealiza. A inserção do vil metal na paquera, obviamente estaria “prostituindo” os sentimentos e/ou sensações da moça simples e simplória.
Lourenço tem que estragar tudo que toca, como estraga as histórias dos objetos com valor afetivo que as pessoas vão tentar vender por qualquer dez “merréis”. Claro que as ligações de uma pessoa com uma caixinha de música que teria sido de sua mãe (personagem de Flavio Bauraqui, ótimo) pode levar aquele que está precisando vender a achar – ingenuamente - que tal “bem”, na verdade um objeto kitsch, teria algum poder de venda para posterior revenda. Mas o prazer de Lourenço em “cagar na cabeça” do ingênuo é incoercível: ele reduz Pour Élise a “musiquinha do caminhão de gás”. Para ele, por mais surrada que seja, nunca terá o encantamento que tem quando executada no piano, tal como a criou Beethoven. Ele quer mais é humilhar o infeliz que está precisando vender algo que lhe era valioso afetivamente.
Como anunciou o trailer do filme, Lourenço é um “cara escroto”. Muito escroto. Não lhe basta colocar as coisas em seus devidos lugares, dizendo objetivamente que não quer comprar, que aquele objeto não tem procura para revenda, que se encontram caixinhas de música como aquela aos montes em importadoras de terceira linha para servirem de presentinhos (abacaxis que sejam) e já com precinho baratinho. Ele se compraz no poder mesquinho de ter a grana que aquelas pessoas não têm e – como um deus de quinta categoria com tal poderzinho de merda – escolhe de quem ele vai comprar e para quem ele vai - sem motivos lógicos- pagar um pouco mais - ou muito menos.
Ele acha que escolhe fazer o que faz. Não sabe que está dominado inconscientemente por seu “caráter anal” que, no fundo, no fundo, se compraz na merda (metafórica ou nem tanto), analidade não transformada em novos valores sociais e culturais como seriam “ordem, parcimônia e obstinação”. Ele está, na verdade, atraído pelas fezes e seus derivados (dinheiro, principalmente), tal como um Midas ainda mais amaldiçoado que em vez de transformar em ouro, transmuta tudo que toca em bagulho, em porcarias acumuladas em estantes desorganizadas num galpão fedorento, com um ralo entupido exalando o tal cheiro do título.
Porque Lourenço é retentivo com as bugigangas que compra. Compraria para revender, diz ele à sua empregada (cujo nome também não sabe, embora ela trabalhe em sua casa há seis anos). Compraria barato velharias e antiguidades, desvalorizando-as - mesmo quando valiosas - para pagar pouco e depois revender com lucro, muito lucro. Mas nunca o vemos vendendo nada. Parece que guarda tudo. Como no capitalismo mais perverso que acumula em vez de distribuir. Como a madame infeliz e “vazia” que se transforma em consumista, comprando roupas e sapatos que mal terá oportunidade de usar: apenas para ter, acumular, guardar, como se isso fosse preencher um vazio e um desejo que mal identifica como e porque.
Lourenço é um colecionista de coisas usadas, com ou sem valor de revenda. Mantém consigo tudo o que compra: retentivo, o “rei” do esfíncter fechado. Não se livra de nada, não abre mão de nada, acumula apenas. O que, afinal? “Um monte de merda”. Para que e por que? Nem ele sabe. Ele age compulsivamente, faz coisas das quais aufere um prazer sádico - ou masoquista (tanto faz, já que pares antitéticos estão frequentemente unidos tal como na dupla “retenção-expulsão”), o que fica mais evidente ainda na cena em que “compra” sexo de uma mulher dizendo-lhe ofensas e gozando ao escutar dela ofensas dirigidas a ele.
Ele teme ser identificado por seus “vendedores” com o cheiro do ralo entupido - porque em algum nível percebe que “fede”. Por isso precisa a todo instante afirmar aos seus clientes, sem que nem lhe seja perguntado nada, que o fedor da sala vem do banheiro (e nunca lhe ocorre fechar a porta que está sempre aberta), do ralo entupido que ele se recusa a consertar por 300 reais (enquanto compra um olho de vidro por 400 !), evidenciando que, no fundo, não quer se livrar do tal cheiro do ralo. Pois serve para mimetizar o cheiro (metafórico ou não) que desconfia existir nele mesmo, em suas ações, subprodutos de suas fantasias mais doentias. Ao mesmo tempo, tem o temor obsessivo de que se pense que o cheiro exala dele. Porque “sabe”.
Com o desenrolar do filme, o temperamento esquizóide (mais do que “fechado”, isolado, introvertido: o de alguém que não consegue estabelecer laços de relacionamento com outras pessoas) mostra que encobre inclinações mais “loucas”, psicóticas: o ralo pode ser um portal de passagem para o inferno! Surgem idéias delirantes a respeito daquilo tudo sobre o que vai perdendo o (apenas aparente) controle que (mal) sustentava.
Por um lado, o retrato psicológico - melhor dizendo, psicopatológico – está muito bem interpretado com a “frieza” e mesmo com certo distanciamento necessário por Selton Mello; e teria sido intuído de forma perspicaz por Marçal Aquino (roteirista), Heitor Dhalia (diretor) e Lourenço Mutarelli (autor da obra original que deu base ao filme). A radiografia daquela alma infeliz e causadora de infelicidade é bastante razoável e mesmo verossímil.
Mas por outro lado, cabe questionar a que serve tal retrato “em um por um” (tal e qual) de uma realidade, a realidade psíquica descrita por psicanalistas e/ou psiquiatras. Com seu caráter insólito e com a - impossível de ser negada - intenção “pour épater”, este filme se transformou em imediato objeto de culto de cinéfilos e de boa parte da crítica que o “descobriu” em festivais. Escatológico, lembra, até mesmo no gancho da loja aonde vão dezenas de clientes em cenas e episódios isolados auto-sustentáveis, uma espécie de O Balconista (Clerks, 1994), de Kevin Smith – só que com a mão muito mais pesada e intenções “mais sérias”. Jamais se aproxima de um filme bem mais distante no tempo como O Homem do Prego(1964), de Sidney Lumet, onde a avareza de Rod Steiger era retratada de forma menos óbvia em suas caracterizações e a leitura da psicologia do personagem não era tão “talmúdica”, “decifrável” pela mera troca de um código (demonstração manifesta factual) por outro (uma proposta teórica de alguma escola psicanalítica). O mais seriam “super-interpretações” como “retrato do Brasil atual” (Arnaldo Jabor) que o filme não sustenta com sua cara de obra que parece remanescente dos tempos da “contra-cultura” do final dos anos sessenta e início dos setenta.
A escatologia em si mesma acaba por manter O Cheiro do Ralo como uma “case story” psicanalítica que poderá despertar alguma fascinação aos não-habituados com tais vicissitudes do humano e que se passa numa levada que lembra os também já antigos quadrinhos de Crumb, com Mr. Natural cheirando os peitões ou o bundão da negona - ou seja, já nasceu meio velho em seu afã de chocar e escandalizar com exploração do doentio e perverso que pode existir em nós, mas sem qualquer dimensionamento ou transformação mais original. É o que é. Mostra o que tem para mostrar. Vai importar menos a ambientação pertinente, a montagem eficiente e os desempenhos exatos. Exibe-se aquilo mesmo tal e qual - e ponto final. Compra-se escatologia barata para vender caro (ou reter), tal como o personagem faz. O trocadilho é tão infame como irresistível: ralo. O Cheiro do Ralo é ralo. E raso.
# O CHEIRO DO RALO
Brasil, 2006
Direção: HEITOR DHALIA
Roteiro: MARÇAL AQUINO, HEITOR DHALIA, baseado em livro de LOURENÇO MUTARELLI
Fotografia: JOSÉ ROBERTO ELIEZER
Direção de Arte: GUTA CARVALHO
Montagem: JAIR PERES. PEDRO BECKER.
Música: APOLLO NOVE
Elenco: SELTON MELLO, PAULA BRAUN, LOURENÇO MUTARELLI, FLAVIO BAURAQUI, SILVIA LOURENÇO, ALICE BRAGA.
Duração: 112 minutos
Site oficial:www.ocheirodoralo.com.br