“Essa foi a coisa mais horripilante que eu já vi!”, exclama uma executiva de Hollywood para um grupo de colegas após assistirem a uma cena do último filme de Sandy Bates, um dos diretores mais aclamados de seu tempo. “Achei que era pra ser uma comédia.” De fato, o trecho assistido está longe de ser engraçado: é uma pastiche precisa de um cinema vanguardista tipicamente europeu, uma sequência onírica que remete às aberturas de ambos 8¹/² de Fellini e Morangos silvestres de Bergman. É o suficiente para que os engravatados do estúdio decretem categoricamente que Bates está desperdiçando seu talento cômico ao perseguir essa nova linha artística. Esta opinião ressurge algumas vezes, expressa de diferentes formas, ao longo de Memórias (Stardust Memories, 1980), uma reflexão metalinguística sobre as relações que surgem a partir do processo criativo de um artista: com o público, com a crítica, com a indústria e com si mesmo.
Em 1980, Woody Allen estava em um dos períodos mais aclamados da sua carreira. Antes do cinema, Allen foi roteirista de programas televisivos e comediante stand-up, e suas primeiras obras como diretor refletem esse período, comédias amalucadas como Bananas (1971) e O dorminhoco (1973). No final da década de 1970, ele iria realizar dois de seus maiores clássicos: Noivo neurótico, noiva nervosa (1977) e Manhattan (1979), obras que o consolidaram aos olhos da crítica e do público como um autor que, além de textos brilhantes, vinha apresentando um cada vez mais apurado senso estético, e que sedimentaram um estilo tipicamente “alleniano” de humor intelectual-burguês com fortes doses de psicanálise. Analisando essa trajetória, é fácil enxergar elementos autobiográficos em Memórias, em que Allen encarna Sandy Bates, um diretor de cinema em crise existencial e pressionado por todos os cantos, ao mesmo tempo endeusado por fãs que esperam dele uma verve cômica constante e atormentado por relacionamentos do seu passado e por sua incapacidade de encontrar para si um propósito no mundo.
Assim como em Morangos silvestres, essa autoanálise do protagonista é provocada por um evento solene em sua homenagem ao qual ele comparece relutantemente. Bates é a estrela de uma retrospectiva de sua obra que acontece durante um fim de semana no hotel Stardust. Lá, ele é constantemente abordado por jornalistas à procura de citações espirituosas para seus tabloides, fãs puxa-sacos que querem parecer inteligentes em suas análises e prospectos roteiristas que enxergam no cineasta a possibilidade de serem descobertos na indústria. Esses momentos, frequentes ao longo do filme, são caóticos e verborrágicos, contrastando com os momentos de introspecção nos quais Bates rememora fragmentos da sua infância trazidos à tona pela atmosfera nostálgica do hotel à beira-mar e pondera seu relacionamento fracassado com Dorrie (Charlotte Rampling), atriz em vários de seus filmes que permanece na mente do diretor como um fantasma parado no canto da sala.
O cerne temático de Memórias está nessa busca de Sandy Bates por pertencimento e propósito. Qual é o sentido de fazer filmes engraçados se o New York Times informa que o universo está se desintegrando? É válido para um artista entregar o que todos esperam dele se isso não faz mais sentido para ele próprio? E qual relacionamento amoroso é mais promissor para se investir: a francesa Isobel (Marie-Christine Barrault), que já tem filhos e espera casamento, ou a recém-conhecida musicista Daisy (Jessica Harper), que traz uma aura de mistério que fascina Bates? Esses dilemas são abordados por Allen em uma linguagem que se rende ao experimentalismo e às próprias tendências europeias de cinema que ele satiriza no trabalho de seu alter-ego. O filme traz momentos de puro surrealismo, sequências oníricas repletas de imagens de uma beleza singela – uma criança que coloca uma toalha nas costas e sai voando, um elefante na praia, um truque de levitação em meio a um campo aberto – fotografadas por Gordon Willis em um deslumbrante preto e branco de baixo contraste que ele já havia apresentado em Manhattan. Mas é Charlotte Rampling, como Dorrie, quem projeta a maior sombra nessa narrativa.
Duas das melhores sequências do filme estão centradas em seu rosto. Na primeira, internada em um hospital psiquiátrico, ela olha diretamente para a câmera e repete várias linhas de diálogo em diferentes entonações, um mecanismo metalinguístico que mais uma vez remete aos movimentos dos novos cinemas dos anos 1960, mas dessa vez com uma sinceridade pungente. Na segunda sequência, Bates descreve, em meio a uma experiência alucinatória de quase-morte, uma lembrança que despontou em sua mente enquanto ele buscava um sentido para sua vida. O momento encontrado por seu subconsciente é uma tarde de domingo comum, em que ele e Dorrie estavam em seu apartamento; ele comendo um iogurte, ela lendo uma revista debruçada no chão. “Stardust” de Louis Armstrong toca na vitrola e, olhando para ela, ele percebe como ela é bonita e como ele a ama. Ela retorna seu olhar, e o mantém por um longo tempo. O que nos é mostrado, de maneira sutil e eficaz, e que Bates apreende com essa epifania, é que existem momentos nas nossas vidas que transcendem racionalizações, estando repletos apenas de uma verdade intrínseca.
Parte do público de Bates, claro, acha isso extremamente pretensioso.