O título de uma obra enquanto camada de sua leitura, tão significativo em outras artes, talvez se encontre subestimado pelo espectador cinematográfico. As versões nacionais não deixam mentir: em vez de privilegiarem a literalidade ou uma nova apreciação, muitas vezes se pautam elas por interesses mercadológicos. Quando duas mulheres pecam, por exemplo, o infame nome atribuído a Persona no Brasil, substitui o jogo de duplos bergmaniano pela vendabilidade de um erotismo sugerido. A última noite de Boris Grushenko, por sua vez, pretere a complexa simplicidade do binômio amor e morte (Love and Death) em benefício da longuíssima forma pela qual se chamou o filme no Festival de Berlim (Die letzte Nacht des Boris Grushenko).
Para além de suas singulares traduções, tanto Persona quanto Love and Death compartilham questões comuns. Elas se resumem, nos derradeiros momentos de A última noite, em um diálogo entre Diane Keaton e Jessica Harper. Nele, a personagem de Keaton, Sonja, parte das desventuras românticas de Natasha, interpretada por Harper, para construir um absurdo e hilário silogismo. “Amar é sofrer, não amar é sofrer, sofrer é sofrer”. O embate entre vida - ou amor - e morte - ou sofrimento -, tão caro à filmografia de Ingmar Bergman, aparece transfigurado sob a direção de Woody Allen. Não sem motivo, os rostos das duas atrizes se cruzam pouco depois, em clara referência ao encontro imagético de Bibi Andersson e Liv Ullmann.
Se o mestre sueco se debruçava sobre os temas da finitude e da perenidade à maneira de um investigador - tal qual o professor Isak Borg, de Morangos silvestres -, seu sucessor norte-americano mais parece um clown ou artista mambembe - como Jof, de O sétimo selo. Tal diferença se delineia desde os primeiros minutos. Boris Grushenko, o bufão vivido por Woody Allen, narra ter conhecido a morte após o acidente fatal de um criado: nesse dia, sonhou vividamente com caixões. Em Morangos silvestres, os mesmos objetos invadem as noites do professor Borg, mas para assombrá-lo. Dos caixões de Love and Death, por seu turno, saem dançantes garçons - antes artifícios cômicos do que dramáticos.
O aceno mais óbvio ao cinema de Ingmar Bergman, contudo, não se manifesta nos rostos cruzados e tampouco nos caixões sonhados. A recorrente imagem da ceifadora universal, presente até mesmo nos pôsteres, remete de imediato à personagem de Bengt Ekerot em O sétimo selo. Figura assustadora, a Morte bergmaniana enfrenta o desafio pela vida do cavaleiro Antonius Block. Figura patética, a Morte alleniana traja precários lençóis e enfrenta o desafio de uma criança. A pergunta-chave não mais atende às demandas existenciais; antes, encerra-se na ingenuidade de um menino: há mulheres na vida após a morte?
Clarividente como o circense Jof, Woody Allen oferece um curto e humorístico ensaio sobre dois eixos centrais de Bergman - quais sejam, o amor e a morte. Ao passo que assume, em sua própria fisicalidade, a pequenez diante de tais perguntas, cujas respostas só se deixam ver de soslaio, o ator e diretor anuncia: deve-se continuar tentando. Se toda a humanidade está condenada à morte, a comédia a convoca para uma última dança.