Críticas


DOSSIÊ WOODY ALLEN: INTERIORES (1978)

25.01.2020
Por Ivonete Pinto
Ficou menos urgente na agenda de problemas atuais, mas não menos relevante.

Ver Interiores no final dos anos 70 resultou em um impacto considerável para alguém saindo da adolescência. Revê-lo tantas décadas depois é uma experiência igualmente significativa, sendo que o desafio ao escrever a respeito não é observar se este filme em específico envelheceu bem ou mal; o desafio é tentar entender o espanto com que foi percebido à época. Interiores é visto como um anti-Woody Allen e talvez aí resida um certo fascínio e um certo desprezo na sua recepção. O pacote mãe manipuladora + filhas inseguras é apresentado em tons de verde esmaecido e bege-marrom que formam toda a paleta de cores da produção, e tudo converge para algo aparentemente mediano. O espectador roga para que alguma coisa atravesse as vísceras dos personagens como num Bergman. A estética de Ingmar Bergman está presente (a fotografia de Gordon Willis é inspirada em Sven Nykvist, o diretor de fotografia do diretor sueco), mas há uma trava no comportamento da família retratada. Uma família onde as mulheres são soberanas, como na filmografia de Allen em geral. Mulheres de todos os perfis, de todas as idades (são 55 filmes!).

O comediante Woody Allen, indissociável de sua imagem de piadista judeu sempre falando da mãe, em Interiores mostra que pode dominar o drama e inaugura de modo definitivo a faceta sombria que voltaria a assumir inclusive nas livres adaptações de Dostoievski: Crimes e Pecados (Crimes and Misdemeanors, 1989, aqui Nykvist finalmente trabalhando para o diretor), Match Point (2005) e Homem Irracional (Irrational Man, 2015). Mas mesmo lidando com temas sérios, como a morte, sempre houve lugar para o humor, muitas vezes garantido simplesmente pela presença do próprio Allen no elenco fazendo o neurótico.

O impacto demasiado de Interiores possivelmente tem a ver com a virada de chave radical do diretor e roteirista no longínquo 1978, pois não há humor no filme, como em dois títulos anteriores, os hilários Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (Annie Hall, 1975) e A Última Noite de Bóris Grushenko (Love and Death, 1975). A melancolia e a depressão são constantes, mas o registro do humor fez com que Woody Allen não levasse a sério até então estes sentimentos. Ele zomba do infortúnio de seus personagens, seus inúmeros alter ego incluídos. Ao rememorarmos o choque deste Allen que se apresentou 100% como sério, o diálogo mais proveitoso que podemos estabelecer é com Pauline Kael, uma debochada iconoclasta que não perdoou esta homenagem de Allen a Bergman. Kael vê em Allen um imitador de Bergman, um diretor que trai sua natureza de comediante.

A mais profícua e mais influente crítica americana de todos os tempos usou o sarcasmo habitual para perguntar “como pode Woody Allen apresentar de uma maneira tão contida e lugubremente direta os mesmos tipos de discursinho sobre ansiedade que em geral parodia?” (Pauline Kael - 1001 Noites no Cinema. Seleção: Sérgio Augusto. Companhia das Letras, 1994, p.245).

Entretanto, Kael toca em um aspecto de Interiores que acaba negligenciando em seu texto. Ela diz que “as pessoas neste filme sério de Woody Allen são destruídas pela repressão do bom-gosto, o mesmo acontecendo com o filme.” (idem). Admitindo tratar-se de um “filme-enigma”, Kael não se dispôs a interpretar o que seria esta espécie de bom-gosto do filme, embora tenha sido muito feliz em seu insight. Nos parece que Woody Allen deu organicidade formal ao universo da personagem de Eve (Geraldine Page), uma decoradora de interiores obcecada pelo bom-gosto padrão Nova York. Controladora, também obcecada ao extremo com a vida do marido, das três filhas e dos genros, desaba quando é abandonada pelo esposo. Sua fragilidade mental, mencionada oportunamente no filme, já fazia dela uma personagem à deriva.

Naturalmente, uma leitura mais consequente de Interiores precisa relacioná-lo à obra de Allen como um todo, sobretudo aos filmes centrados em núcleos familiares, especialmente Hannah e Suas Irmãs (Hannah and Her Sisters, 1986). Se a morte e Deus são temas onipresentes, as mães sempre rendem as reflexões mais engraçadas e argutas na filmografia alleniana. Normalmente as diatribes das mães, mesmo que geralmente pintadas como pessoas patologicamente controladoras, não têm maiores consequências – ou as consequências simplesmente descambam para piadas. Alguns anos antes, Pauline Kael perfilou Woody Allen a propósito de O Dorminhoco (The Sleeper, 1973), como um comediante e disse que ele se tornou nosso herói popular porque havia a ideia de que o fracasso poderia ser bem-sucedido: “de certa forma, esse era seu pacto conosco para conseguir nossa lealdade, e funcionou”. (Pauline Kael - The Ages of Movies. Seleção: Sanford Schwartz, Library of America, 2016, p. 413)

Aqui, porém, parece que o pacto deixou de funcionar. A mãe de Interiores opera como matriz das inseguranças, ciúmes e ódios represados das filhas (Diane Keaton, Kristin Griffith, Marybeth Hurt) e ao menos duas delas, às mais próximas da mãe, são profundamente infelizes. A falta de gritos, a falta de escândalo e de drama é o que incomoda Pauline Kael, ou seria a falta do pacto com o piadista? Pois nestas ausências estaria o desafio de Allen: construir uma narrativa tão atada à repressão alimentada pela mãe, que o caráter da personagem contamina a forma de expressão do filme. Mesmo o final, com o suicídio, é impresso pelo bom-gosto da sobriedade. Note-se que a tentativa anterior de suicídio era mais marcada ainda pelo tom severo. Metodicamente, Eve lacra com adesivo todas as frestas de portas e janelas do apartamento. Elegantemente vestida. E a última imagem, com as filhas lado a lado na janela da casa da praia concluindo que o mar está calmo, é contido como um desdrama de Ozu.

A manipulação da mãe, por sua vez, continua sendo exercida naquelas filhas ressentidas mesmo após a morte dela. O pai (E.G. Marshall), secundário em sua função, sem direito a cenas solo, é o único que parece respirar e graças a isto encontra outra mulher, uma luminosa viúva que veste vermelho (Maureen Stapleton). O clichê na simbologia das cores igualmente faz eco neste bom-gosto nova-iorquino todo programado.

Hoje, 40 anos depois de sua estreia, até poderíamos dizer que tudo não passa de um raso white people problems. O filme ficou menos urgente na agenda de problemas atuais, mas não menos relevante quando abstrairmos a classe média nova-iorquina em suas idiossincrasias e subirmos o patamar filosófico da trama. Sim, o terrível papel manipulador que uma mãe pode exercer sobre suas filhas dialoga com Sonata de Outono (Höstsonaten, 1978) de Bergman. No entanto, lançado no mesmo ano que Interiores, Sonata bate como um drama mexicano perto deste, por isso a dificuldade que Kael tem em enxergar profundidade em Allen?

Dando corda à ideia de que Woody Allen replica o universo das suas personagens para forjar o tom do filme, não seria demais pensarmos que a mãe dominadora em Bergman (e também doente), só pode ser tratada no registro do drama beirando o melodrama. Ela é uma pianista genial (Ingrid Bergman) e seu oposto é a filha pianista medíocre (Liv Ullmann). A arte “superior” sendo a baliza dos ressentimentos, enquanto na família americana a mãe é uma bem sucedida decoradora de interiores. Ou seja, tudo o que as filhas de Interiores aspiram estaria no campo do supérfluo, o tal bom-gosto referido por Kael através de um comportamento equilibrado (todas até se vestem de forma parecida, com os mesmos tons dos objetos de decoração da mãe). E nada mais limitador do que isto. Tão limitador que chega a ser trágico. Não podemos esquecer que o universo de Allen é recheado de personagens com profissões medíocres, comuns, como a do oftalmologista do já citado Crimes e Pecados. Inserir o grandioso no banal, no personagem menos nobre, é sua expertise.

Parte da precisão de Woody Allen ao lidar com estas entranhas relacionadas ao domínio da “arte da decoração” exercida pela mãe, está na performance extraordinária de Geraldine Page. A mente perturbada de Eve ganha camadas e mais camadas num mesmo close, tudo explorado com sutileza pela direção. A elegância e a finesse induziram e modularam as ferramentas que Allen trabalhou em Interiores. Ele buscou emular o ambiente de seus personagens e por isto pagou o preço de não ser compreendido. Fazer o quê...



IVONETE PINTO é Professora Associada no curso de Cinema da UFPel, presidente da Abraccine e editora da revista Teorema

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