Após o inesperado e estrondoso sucesso de “Annie Hall”, que ganhou 4 Oscars, entre eles os de melhor filme, direção e roteiro, Woody Allen quebrou todas as expectativas com o pesado drama “Interiores”, em que pôde dar vazão ao seu desejo de fazer um filme “sério”, quase um tributo a um de seus maiores ídolos, o cineasta sueco Ingmar Bergman. A repercussão foi a mais negativa possível tanto entre os críticos como entre os fãs, que esperavam que Allen os fizesse rir. O próprio diretor declarou posteriormente que se pudesse reescrever “Interiores” o filme teria um pouco de humor para amenizar o drama.
Mas não foi preciso muito mais tempo para que ele se reconciliasse com os admiradores de seu trabalho. Logo no ano seguinte, em 1979, seria lançada aquela que talvez seja a maior de suas obras-primas, o filme-síntese de uma obra genial: “Manhattan”.
A abertura já é por si só desconcertante: a narração em off de um escritor refletindo sobre diferentes formas de começar um livro em que declara seu amor por Nova York, ilustrada por imagens em preto e branco da cidade pulsando com o movimento nas ruas, os letreiros iluminados, culminando com fogos de artifício por detrás dos arranha-céus, tendo ao fundo (ou à frente, dependendo da perspectiva) os acordes de “Rhapsody in Blue”, composição escrita por George Gershwin em 1924.
O que se verá a seguir é um compêndio de várias das marcas registradas que Allen desenvolveu em mais de cinco décadas de carreira: cirandas amorosas protagonizadas por um intelectual neurótico, verborrágico, hipocondríaco, nostálgico, tendo ao fundo uma visão idealizada de sua cidade preferida, sobretudo a região que dá nome ao título: Manhattan.
Por vezes temos a impressão de que os filmes de Woody Allen se bastam pelo talento do diretor-roteirista-ator, mas em “Manhattan” há de se louvar o papel fundamental de dois profissionais da equipe técnica. Uma é a montadora Susan E. Morse, com quem ele trabalhou por 20 anos seguidos a partir deste filme, que garante o fluxo poético da narrativa, intercalando o ritmo frenético dos diálogos com pausas que permitem a devida acolhida à combinação da música com as imagens da cidade.
O outro é o responsável por essas imagens: Gordon Willis, o lendário diretor de fotografia conhecido como Príncipe das Trevas por conseguir, como poucos, trabalhar os efeitos das sombras. É dele a fotografia da trilogia “O Poderoso Chefão”, “Annie Hall”, “Zelig”, “A Rosa Púrpura do Cairo”. Teve apenas duas indicações ao Oscar ao longo da carreira, e em 2010 lhe deram de consolo um Oscar honorário.
Azar do Oscar que não soube reconhecer na ocasião o que ele fez em “Manhattan”. A cena em que Isaac (Allen) e Mary (Diane Keaton) conversam tendo ao fundo a Queensboro Bridge se tornou uma das imagens mais marcantes da história do cinema, fruto do trabalho de um diretor de fotografia extremamente rigoroso na composição de cada plano, e que em “Manhattan” oferece outros momentos sublimes, como a sequência do Planetário. Foi ele quem convenceu Allen da importância de utilizar, neste filme, o formato widescreen.
Perto do fim, Isaac se arrepende de tê-la abandonado e resolve ir atrás de Tracy (Mariel Hemingway), sua ex-namorada quase adolescente, quando ela está prestes a embarcar para um período de estudos na Europa. Pede que mude de ideia e fique, mas ela responde que seis meses passam rápido e eles poderão se reencontrar no futuro. Ante a reação de desânimo dele, ela retruca: “você precisa ter um pouco de fé nas pessoas”. Com a música de Gershwin tocando ao fundo, ele esboça um leve sorriso e o filme termina.
Termina? Até hoje as leituras desta cena são as mais variadas possíveis. Há quem garanta que ele finalmente se tocou de que a ama e estaria disposto a lutar por esse amor. Mas a combinação da frase “você precisa ter um pouco de fé nas pessoas” com o sorriso enigmático dão margem à interpretação que, para mim, é a mais coerente com a obra de Allen. Se tiver fé nas pessoas, Isaac deixa de ser um típico personagem de Woody Allen. Se tivessem reatado, a paixão desapareceria tão logo uma outra Mary cruzasse seu caminho. Portanto, o melhor que Isaac tem a fazer é oferecer o sorriso de quem sabe que o seu mundo é aquele que nos habituamos a reconhecer em cinco décadas de carreira.