Críticas


INFERNO

De: DANIS TANOVIC
Com: EMANUELLE BÉART, KARIN VIARD, MARIE GILLAIN
20.04.2007
Por Luiz Fernando Gallego
AS APARÊNCIAS ENGANAM: O INFERNO É AQUI

O falecido cineasta polonês Krzysztof Kieslowski e seu parceiro habitual nos roteiros, Krzysztof Piesiewicz, gostavam de desenvolver blocos de filmes com um eixo comum: Não Amarás era parte do Decálogo, uma série desenvolvida a partir dos dez mandamentos, cada um servindo de mote para histórias pouco habituais em relação ao que se imaginaria para uma "leitura" mais linear ou óbvia dos dísticos religiosos. Da mesma forma, os ideais da Revolução Francesa representados nas cores azul, branco e vermelho mereceram uma abordagem original, mesclando dramas individuais com temas coletivos, tal como o da União Européia, na época ainda por se concretizar mais efetivamente.



Pouco antes de morrer precocemente, Kieslowski havia anunciado que talvez não fizesse mais filmes, mas uma nova trilogia, agora sobre os três espaços da Divina Comédia de Dante, vem sendo espaçadamente levada às telas por diferentes diretores a partir de idéias, argumentos e roteiros da dupla de poloneses. Paraíso foi dirigido por Tom Tykwer em 2002; um suposto “Purgatório” ainda é uma incógnita. Este Inferno foi apresentado sem muita repercussão no Festival do Rio de 2006, um ano depois de ter sido exibido na mostra paulista. Seria uma pena se este filme não tivesse lançamento regular, embora suas chances de interessar a um público mais amplo pareçam algo reduzidas. Afinal, o que se poderia esperar de uma obra que faça jus a tal título?



Para o círculo de fãs acostumados aos filmes e roteiros de Kieslowski, desta vez a abordagem inicial talvez soe menos criativa e original do que em oportunidades anteriores, embora uma referência mitológica, explicitada já perto do desfecho, vá proporcionar uma certa “virada” no que ia parecendo apenas uma aproximação um tanto óbvia do espaço de danação eterna da teologia católica - cujo inferno, em uma visão menos simplória, não é onde diabos espetam almas penadas em chamas eternas, mas sim a privação do amor divino e da comunhão com os bem-aventurados, ou seja: solidão absoluta, ainda que em companhia de outros igualmente privados da graça, além de desamparo e desesperança eternos.



Para ateus e intelectuais do século XX, o inferno ganhou as cores da idéia sartreana em sua conhecida formulação “o Inferno são os outros” – frase habitualmente mal-entendida como se tivesse uma conotação negativa em relação à vida em comum, equívoco que irritava Sartre. Para ele, sua proposta era que o inferno seria nosso aprisionamento à imagem cristalizada que os outros fazem de nós, o que retiraria a liberdade de transformação do ser fixado num espelho alheio a si próprio. Embora o pensamento católico pareça ter um pano de fundo mais influente na obra de Kieslowski, não se pode deixar de pensar, a partir da história que vai se revelar neste Inferno, em uma forte coincidência com a impossibilidade de mudança dos personagens mortos de Entre Quatro Paredes (Huis-Clos), versão teatral que Sartre deu a seu pensamento filosófico.



Há algumas questões que este filme pode suscitar, sendo a menor delas a impressão de que o diretor da vez, o bósnio Danis Tanovic, premiadíssimo com o quase beckettiano Terra de Ninguém, foi muito reverente com o material que teve para transformar em imagens, tal como o alemão Tykwer quando abandonou o molto presto de Corra, Lola, Corra ao filmar o Paraíso em ritmo andante ou quase adagio. No início deste filme também há um excesso de óbvios (mesmo que belamente fotografados) tons de vermelho – tão mais fortes que nem parece a mesma cor de A Fraternidade é Vermelha, último filme que Kieslowski efetivamente dirigiu. Fraternidade é um conceito quase totalmente ausente deste Inferno.



O clima é melodramático, com uma mise en scène um tanto alegórica (os créditos surgem sobre uma imagem caleidoscópica de um ninho de aves) e em tom exacerbado (que a música do próprio cineasta enfatiza) - mas que ao mesmo tempo consegue induzir o espectador a um certo grau de distanciamento – em grande parte devido à aparente desconexão entre as cenas e personagens. Duas delas são mulheres se debatem em vidas infernais de frustrações amorosas simétricas, uma como esposa traída, outra como amante de homem casado, em desespero; uma terceira aparece em conformado tédio, cuidando de uma mãe paralítica e muda, numa vidinha sem alento. Algumas cenas, como a de um casal de noivos, um tanto bizarros, sendo fotografados, surgem como corpos estranhos insólitos no meio do filme, talvez um questionável resíduo do clima absurdo-irônico do premiado filme anterior de Tanovic, agora com maior peso alegórico.



Mas a excelência dos desempenhos da mais conhecida Emanuelle Béart, ao lado de Karin Viard (de O Corte, de Costa-Gavras) e Marie Gillian (de Afinidades Eletivas, dos Irmãos Taviani) consegue manter o interesse na parte inicial do filme, até que seja explicitada a “tese” que o roteirista Piesiewicz quis demonstrar através da referência mitológica já mencionada acima, elemento que dá ao um novo impulso, mais próximo da originalidade que se esperaria de um argumento de Kieslowski e de seu colaborador em tantos outros filmes.



Se Paraíso foi subestimado, ainda que com alguns prêmios internacionais, este Inferno está sendo ainda mais questionado - e mesmo mal-recebido pela maior parte da crítica européia, com raras exceções. Mas merece ser conhecido e pode mesmo ser considerado com apreço, conforme a idéia embutida no roteiro que será revelada em seguida, com uma ressalva prévia: DAQUI EM DIANTE, ESTE TEXTO VAI MENCIONAR ELEMENTOS QUE PODEM NÃO SER DO INTERESSE DE QUEM AINDA VAI VER O FILME E NÃO DESEJA CONHECER AS REVELAÇÕES DO ENREDO.



Um eixo central do filme é a tese de uma das personagens que trata da lenda de Medéia, que mata seus filhos como forma de retaliar a traição do seu esposo, Jasão, que pretende abandoná-la por causa de um novo envolvimento amoroso. Com esta insistente alusão, o espectador pode ficar na expectativa do que a personagem de Emanuelle Béart – desesperada e fora de prumo com a traição do marido - poderá fazer com suas crianças. Uma bela cena com referência visual ao catolicismo de Kieslowski, redefinirá o destino desta personagem e de sua prole.



A “Medéia” que o filme vai revelar não é, como se poderia pensar, a personagem de Béart, mas a mãe dela e das duas outras mulheres: irmãs, cujas vidas foram marcadas por dois traumas interligados. Um deles, a separação dos pais, por acusação da mãe de que o marido estaria seduzindo um aluno adolescente, o que é mostrado em uma breve cena onde vemos a mulher flagrando o marido com um aluno despido, o que acontece pela precipitação de uma das filhas, ainda criança, quando abre intempestivamente a porta da sala onde o pai e o aluno estavam. É a seqüência de abertura, um prólogo brilhante, onde o espectador quase só vê apenas os sapatos de época da menina e da mulher adulta em primeiro plano num acelerado travelling em profundidade que se conclui na imagem rápida do homem mais velho e uma pessoa despida, frente a frente, imagem que só será mais bem explicada perto do desfecho.



A tragédia subseqüente decorre da visita que o pai, após cumprir pena pela transgressão denunciada pela esposa, tenta fazer às suas filhas: a mulher, considerando-se traída e humilhada, tenta impedir. Uma briga violenta a deixará aleijada e ele se sucidará em seguida. A tentativa de restaurar a verdade, entretanto, não atingirá a “mãe-medéia” das três personagens principais do drama (“medéia” porque teria podido “retirar a vida” das filhas sem que elas houvessem morrido concretamente) e a frase final que ela escreve num papel, já que ficou afásica, remete à idéia sartreana sobre a cristalização da imagem de uma pessoa (o marido morto) por parte do “outro” (a esposa), aquela que foi e será o “inferno” de cada um de seus parentes, por sempre se recusar a aceitar o significado de uma nova versão sobre o que entreviu no passado. O caleidoscópio de imagens repetidas se repete sobre as quatro mulheres aprisionadas na trama do desamor narcísico daquela mãe infernal.





# INFERNO (L’ENFER)

França, Itália, Bélgica, Japão, 2005

Direção:DANIS TANOVIC

Roteiro: KRZYSZTOF KIESLOWSKI, KRZYSZTOF PIESIEWICZ

Fotografia: LAURENT DAILLAN

Montagem: FRANCESCA CALVELLI

Música: DANIS TANOVIC, DUSCO SEGVIC

Elenco: EMANUELLE BÉART, KARIN VIARD, MARIE GILLAIN, GUILLAUME CANET, JACQUES PERRIN, CAROLE BOUQUET, JEAN ROCHEFORT, JACQUES GAMBLIN, MIKI MANOJLOVIC

Duração: 95 minutos

Site oficial: clique aqui

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