Em Eu não quero dormir sozinho, Tsai Ming-liang abandona a bizarrice kitsch de seu filme anterior, O Gosto de Melancia (2005) para falar de ternura – ainda que de um modo um tanto “desafetivado”, ou seja, com o “distanciamento” que seus longos planos fixos induzem no espectador. Mas ao mesmo tempo, aproxima-nos com intensidade do que está se passando “friamente” dentro do quadro, provocando emoção - mas sem transbordamentos.
Ou seja, através de uma exposição um tanto “seca”, as cenas transpiram o afeto advindo da consideração pela alteridade. Ou nascido da carência de quem cuida - sem que importe para quem recebe cuidados qual seria a motivação de quem cuida.
Se O Gosto da Melancia representava um beco sem saída pela exacerbação indigesta de tudo que funcionara bem em, por exemplo, O Buraco (1998), este “recuo” para uma narrativa caracterizada pelo mais elegante ascetismo surge como um passo adiante, demonstrando a “contaminação” provocada pelo afeto em um ambiente inóspito e degradado através de enquadramentos tão “assépticos” quanto, inversamente, o ambiente mostrado aparece “contaminado”, como que em decomposição. Mas não se terá nada de pieguice ou de sentimentalismo barato: maus hábitos e má conduta também estão presentes como sugestão do amplo espectro de emoções, “positivas” e “negativas” de que o ser humano é capaz de conter e expressar. Mas o que o filme parece querer dizer é que alguns - poucos que sejam - de alguma forma poderão experimentar o contacto emocional com o outro, contacto-vínculo-ligação que é a marca fundamental da condição humana: jamais mera biologia, nunca um dado em si mesmo, mas uma história que é a história de nossa convivência com os demais. Seja lá como isso se passa, seja lá como isto terá sido desenvolvido (ou desestimulado) por cada um e por cada “outro”.
Se em O Gosto de Melancia a falta de água era responsável pelo ambiente deteriorado, em Eu não quero dormir sozinho é a água que inunda o esqueleto de uma construção - ou alaga suas ruínas - trazendo a impressão de que tudo está sendo minado, material e fisicamente corrompido. Como se não bastasse, este mundo quase em putrefação vai ser atingido por uma nuvem que torna o ar irrespirável, acentuando-se uma ambiência pré-apocalíptica. As pessoas usam máscaras improvisadas mas não conseguirão, por exemplo, ter relações sexuais, pois a respiração ofegante inerente ao ato se transforma em facilitador para a asfixia. Este mundo jamais acabaria como em um grandioso (?) filme catástrofe. Não: aqui, tudo poderá se extinguir, mas em desolador silêncio. O mesmo silêncio que domina os personagens cujas vozes não escutamos, como se eles não tivessem o uso da palavra, fazendo deste uma espécie de filme “mudo”, ainda que sonoro; e ainda que utilize - nem tão paradoxalmente - de quatro diferentes línguas orientais quando algo é falado. Corolário de barreiras ao entendimento, à compreensão e - quem sabe? - à compaixão.
A única concessão que o cineasta faz a um recurso de – discreta - ênfase para intensificar um “clima” emocional virá, algo surpreendentemente, de uma conhecida melodia feita para um antigo filme que seria quase que seu avesso em matéria de estrutura e exposição. O "Tema de Terry" - mais conhecido no Brasil pelo mesmo título do filme para o qual foi composto e que é um dos mais despudorados e sublimes melodramas de Chaplin, Luzes da Ribalta, quando surge na trilha sonora, cantado em versão para uma língua oriental, não se configura como um recurso de apelo a emoções facilmente mobilizáveis na platéia. Acentua apenas e tão somente o desalento do último quadro.
Se tivéssemos que tentar uma analogia para com este filme, poderíamos recorrer à poesia de João Cabral que nos ensina a “educação pela pedra”. Eu não quero dormir sozinho enfoca a decrepitude e degradação do entorno em oposição à possibilidade de união e de encontro entre seres humanos. E nesta permanente oposição/concomitância do terno com o degradado, pode ser dito, com versos de João Cabral, que o filme é belo “porque corrompe, com sangue novo, a anemia” e “infecciona a miséria com vida nova e sadia”. Mesmo que tudo acabe, o que importa é que não se acabe só.
<b># EU NÃO QUERO DORMIR SOZINHO</b> (Hey ian quan)
<b>Taiwan/França/Austria, 2006</b>
<b>Direção e Roteiro:</b> Tsai Ming-liang
<b>Elenco:</b> Lee Kang-Sheng, Chen Shiang-chyi e Norman Atun.
<b>Duração:</b> 115 minutos