Duda, um dos personagens de Ódiquê? , lembra, em determinado momento, da figura de Zé Pequeno, um dos protagonistas de Cidade de Deus . A referência soa óbvia: são dois filmes que abordam a violência no Rio de Janeiro, ainda que com recortes diversos. Enquanto Fernando Meirelles realça a escalada da criminalidade, ao longo de décadas, nos conjuntos habitacionais de Jacarepaguá, Felipe Joffily, neste seu longa-metragem de estréia (filmado em 2003), assumidamente inspirado em O Ódio , de Mathieu Kassovitz, destaca a longa jornada madrugada adentro de jovens da Zona Sul com os pés fincados, mesmo que em medidas um pouco variáveis, na delinqüência.
Há, porém, um outro elo de ligação entre as produções: o registro interpretativo buscado para os atores. Tanto em Cidade de Deus quanto em outro importante filme brasileiro da safra recente - O Céu de Suely , de Karim Aïnouz -, a coach Fatima Toledo procurou fazer com que os intérpretes construíssem uma naturalidade e se afastassem de uma representação com vícios de declamação. Por isto, ao assistir às obras de Meirelles e Aïnouz, a platéia não tem a sensação de que está diante de atores que interpretam personagens e sim de pessoas reais. Este afastamento do ator que mente, que finge de maneira convincente ser quem não é, surge em mais um filme, Cão sem Dono , novo trabalho de Beto Brant, inédito no circuito comercial, através da valorização do diálogo improvisado, no qual um personagem não espera o outro terminar de falar. É um cinema que busca a autenticidade, que procura se amalgamar à vida, e outras produções, não só brasileiras, poderiam ser citadas, a exemplo de Segredos e Mentiras , de Mike Leigh, marcado por uma singular direção de atores.
No que diz respeito ao rendimento do elenco, Ódiquê? não apresenta a mesma excelência das obras citadas, mas também revela a busca por vozes nada impostadas. Uma questão permanece ao final da projeção: teria o diretor aproveitado a naturalidade da primeira tomada de cada seqüência ou o tom absolutamente improvisado das falas resultaria de uma construção alcançada em ensaios? Seja como for, Alexandre Moretzsohn, Cauã Reymond, Dudu Azevedo e Leonardo Carvalho demonstram fluência dentro da proposta lançada pelo diretor, apesar de sucumbirem, em parte, à linearidade dos tipos que interpretam.
O desenho previsível dos personagens deve-se ao fato de Felipe Joffily traçar um retrato dos pitboys cariocas que não acrescenta muito ao que já foi mostrado. É quase inevitável, inclusive, comparar Ódiquê? com o explosivo Cama de Gato , na medida em que ambos são trabalhos de estreantes que abordam uma juventude desorientada, reacionária e vazia. Repleto de falhas, o filme de Alexandre Stocker é, contudo, favorecido por um vigor underground, enquanto que Ódiquê? não chega a firmar uma identidade estética. Além disso, o diretor e o roteirista (Gustavo Moretzsohn) concentram esforços para criar uma trama algo engenhosa e suscitar polêmica com um final-surpresa que parece redimir - pelo menos, até certo ponto - personagens tão moralmente condenáveis, a julgar, em especial, pelas cenas de choque que vêm causando incômodo nos espectadores: aquelas em que um dos personagens humilha e agride um guardador de carros deficiente mental. No entanto, a polêmica não deverá ultrapassar eventuais discussões de mesa de bar.
# ÓDIQUÊ?
Brasil, 2003
Direção: FELIPE JOFFILY
Roteiro: GUSTAVO MORETZSOHN
Produção: TININHO FONSECA
Fotografia: MARCELO BRASIL
Elenco: ALEXANDRE MORETZSOHN, CAUÃ REYMOND, DUDU AZEVEDO, LEONARDO TORLONI, CASSIA KISS
Duração: 90 minutos