Críticas


LADY VINGANÇA

De: PARK CHAN-WOOK
Com: LEE YEONG-AE, KIM SHI-HOO, CHOI MIN-SIK
11.05.2007
Por Luiz Fernando Gallego
EXPRESSO ORIENTE HARDCORE

A substituição do princípio de vingança pela Justiça (e pelas leis) é uma das mais importantes marcas do processo civilizatório desde a Grécia antiga, estando exemplarmente demonstrada na trilogia teatral conhecida como Orestéia, de Ésquilo: Orestes, um príncipe desterrado, tem obrigação de vingar o assassinato de seu pai, o rei Agamenon, que foi morto pela esposa, Clitemnestra. Ou seja, Orestes tem que matar a própria mãe. Depois de consumado o matricídio ele passa a ser perseguido pelas terríveis Erínias, deusas da culpa e do remorso, que nascem do sangue derramado da vítima. A defesa de Orestes é que ele seguia as ordens de outro deus, Apolo, em cujo templo vai buscar refúgio: se ele não vingasse seu pai, ele também seria perseguido por Erínias, aquelas do sangue do rei assassinado que, até então, perseguiam a mulher criminosa.



Ao perceber que os crimes de vendetta entram em um círculo vicioso sem fim, onde sangue clama por mais sangue, a deusa da sabedoria, Palas Atena, inventa o sistema de julgamento por doze anciãos que escutam as acusações das deusas da vingança contra o matricídio perpetrado por Orestes e a defesa de Apolo, contra a impunidade do regicídio cometido pela própria mulher de Agamenon. Há um empate nos votos dos juízes em número par, e Atena desempata em favor de Orestes (o “voto de Minerva”, nome da mesma deusa grega para os romanos). Ele não deve mais ser perseguido pelas Erínias; estas reclamam, argumentando que se elas, deusas mais arcaicas, perderem seu lugar e função, os crimes humanos ficarão sem a necessária punição. Atena propõe que se transformem em deusas bondosas com o propósito de advertir os homens antes que cometam crimes imaginados, evitando que venham a sentir seus próprios remorsos posteriores. Elas passam a ser chamadas de Eumênides.



A substituição do “olho por olho, dente por dente”, no entanto, não é algo líquido e certo, mas um processo em reconstrução diária na civilização, pois a inclinação pela vingança pura e simples é a primeira coisa, quase “instintiva”, que nos ocorre quando sofremos uma injúria severa. Deixar o julgamento e a punição ao encargo de uma Justiça “cega” (“cega” porque neutra, não envolvida passionalmente na avaliação dos fatos) evita, inclusive, que vítimas se transformem em novos criminosos - como foi o destino original do Orestes mítico.



O tema é recorrente em grandes obras de ficção e serve frequentemente a muitos romances policiais. Em vários, um crime atual é desvendado ao se descobrir que existe um vínculo do morto com algum dos suspeitos: alguém que seria uma pessoa “do bem”, exceto quando cedeu à vingança por algo que, no passado, o agora morto teria cometido, prejudicando aquele que, anos mais tarde, consegue fazer “justiça” pelas próprias mãos. O debate sobre a pena de morte se vincula a estas questões. Quanto mais “inocente” nos parece a vítima, maior é a nossa tendência para ultrapassar os procedimentos da Lei ou a inclinação pela vingança taliônica dentro do sistema judiciário, através da pena de morte.



Em um de seus livros mais famosos, Agatha Christie buscou inspiração no seqüestro e morte reais do bebê do famoso aviador Charles Lindenberg para fazer com que o legalista detetive Hercule Poirot abandonasse seus princípios legais ao descobrir que um grupo de pessoas envolvidas num caso similar ao do bebê Lindemberg havia feito “justiça” através de vingança contra o assassino seqüestrador. O herói habitual das novelas de A. Christie, Poirot, desvenda um crime atual, mas desta vez não denuncia os implicados que vingavam uma criancinha morta no passado.



A historieta encoberta pela direção rebuscada de Lady Vingança lembra muito - em sua expressão mais simples - o romance de Agatha Christie, levado ao cinema por Sidney Lumet, Assassinato no Expresso Oriente. A imaginação fértil da escritora podia tratar de crimes bárbaros, mas ainda que bastante datados e apresentando, hoje, uma dose de ranço kitsch, raramente a escritora inglesa descambava para o grotesco ou para o grand guignol, risco que os filmes sempre correm porque podem concretizar em imagens o que é apenas descrito na literatura - e muitas vezes de forma elíptica, elipses que o cinema também pode utilizar - e utilizava muito - mas há tempos já se abandonou a discrição pelo sensacionalismo e pela sede de uma verossimilhança que chega a ser inverossímil, "hiper-realista" sem ser exatamente real, uma caricatura "over" do que seria a realidade, banalizando e/ou exacerbando a violência.



O diretor Park Chan-Wook já havia demonstrado este estilo (um tanto "tarantinesco" - com menos humor) no supervalorizado Old Boy em que adiava revelações e buscava reviravoltas que visavam surpreender e chocar quando ia explicando o que o roteiro mesmo se encarregara de ocultar e omitir; tudo isso através de uma narrativa cheia de rebuscamentos formais atraentes apenas até certo ponto, já que havia uma saturação de violência e mesmo de mau-gosto, dissimulado por recursos hipertrofiados de técnica cinematográfica e de efeitos especiais na fotografia, montagem e composição de planos acronológicos de uma narrativa modernosa que se revelava um verdadeiro falso brilhante: uma história “chocante”, cheia de barulho e fúria violenta, significando muito pouco.



Este subseqüente Lady Vingança é quase a mesma coisa, só que em versão piorada, sem qualquer originalidade em relação ao filme anterior e que deixa uma incômoda sensação de plágio chupado do enredo de Agatha Christie citado acima, agora em versão explícita à moda grand guignol (ou hardcore, tanto faz, o resultado é o mesmo grotesco bizarro). A tentativa de manipulação do espectador com o crime contra criancinhas (no plural mesmo, uma só não bastava) incomoda mais pelo abuso do que pelo pathos pretendido no sentido de instigar a adesão à vingança por parte da platéia. Tudo isso embalado em fotografia preciosista, enquadramentos “estéticos”, imagens bizarras e ângulos rebuscados, para não falar do (ab)uso de música elegante de Vivaldi e de cantos religiosos gregorianos, medievais e similares. Pode iludir, envolver e enganar os olhos (e os ouvidos musicais), mas corre o risco de que nosso próprio estômago denuncie a falácia de um suposto (já nem tão) novo valor cinematográfico.



# LADY VINGANÇA (CHINJEOLHAN GEUMJASSHI)

Coréia do Sul, 2005

Direção:PARK CHAN-WOOK

Roteiro: PARK CHAN-WOOK e JEONG SEO-GYEONG

Fotografia:JEONG JEONG-HUN

Montagem:KIM JAE-BEOM e KIM SANG-BEOM

Música:CHOI SEUNG-HYEON, JO YEONG-WOOK e NA SEOK-JOO

Direção de ArteCHOI HYEON-SEOK e HAN JI-HYEONG

Elenco:LEE YEONG-AE, KIM SHI-HOO, CHOI MIN-SIK, KIM BYEONG-OK, GO SU-HEE.

Duração: 112 minutos

Site oficial:www.geum-ja.co.kr

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