Críticas


HÉRCULES 56

De: SILVIO DA-RIN
15.05.2007
Por Luiz Fernando Gallego
MELHOR QUE A FICÇÃO

O filme de Sílvio Da-Rin bate na tela com as características de um documentário exemplar sobre o assunto que escolheu abordar e refletir: o episódio real dos quinze presos políticos que foram libertados em setembro de 1969 em troca do então embaixador dos Estados Unidos, seqüestrado por outros ativistas que lutavam contra a ditadura militar instalada no Brasil em ’64. O filme tem como ponto de partida a foto de treze deles, ainda com algemas, imagem registrada pouco antes de embarcarem no avião da Força Aérea Brasileira que os levou para o México, o Hércules 56 do título. O espectador vai sendo informado dos trâmites das saídas de cada um das cadeias onde se encontravam. Eles pertenciam a diferentes grupos de esquerda e estavam em diferentes locais do Brasil; muitos nem se conheciam. Também ficamos sabendo de seus destinos em um período posterior logo em seguida à libertação, principalmente nos depoimentos dos sobreviventes na época das filmagens (2005) - mas também através de algumas informações sobre os já falecidos, seja por causas naturais, seja porque sucumbiram sob tortura ou morreram quando retornaram ao país mantendo a atividade chamada de “subversiva” pelos que haviam se apossado do poder através do golpe que insistiam em chamar de “revolução”.



Um dos pontos de reflexão que o filme provoca é exatamente a questão do delicado momento de decisões históricas que vivíamos em plena efervescência dos “ideais de ‘68” em todo o mundo – e mais especialmente, em relação à indignação com o que se passava no Brasil em estado de exceção. Outros sobreviventes da época, dentre aqueles que arquitetaram e/ou participaram da “captura” do embaixador Charles Elbrick (chamar de “seqüestro” seria considerar a ação um crime e não um ato revolucionário) aparecem recordando alguns detalhes dos acontecimentos que envolviam a ameaça de morte ao embaixador, caso a junta militar não aceitasse a barganha. O tom geral dessas reflexões aponta para uma certa dose de mea culpa quanto a algumas falhas cometidas na ação e, principalmente, quanto às conseqüências indesejadas que a ousadia do plano provocou junto à repressão militar afrontada – até mais com a obrigação de divulgarem um manifesto-denúncia, dizem eles, do que com a libertação dos presos. Mas também há um reconhecimento de que os equívocos do gesto eram, na época, a “coisa certa” a ser feita, tal a falta de perspectivas que a situação política havia assumido. Há antigas acusações às lideranças políticas de antes do golpe, os políticos “profissionais” que não haviam resistido à sublevação dos militares, resistência que se esperava deles antes do golpe de 31 de março - que foi um verdadeiro “primeiro de abril” nefasto em vários sentidos.



O filme pode induzir a um questionamento se tal crítica às lideranças democráticas da época é apenas pertinente por si mesma (como parece ter sido) ou se também reflete a influência do olhar atual sobre a aporia dos nossos partidos e da maioria de nossos políticos dos últimos muitos anos pós-“abertura” e redemocratização através de eleições diretas. Alguns nomes importantes do cenário governista aparecem falando sobre os eventos de quase quarenta anos atrás, com destaque para o atual Ministro Franklin Martins (que participou da captura do embaixador) e para o ex-todo-poderoso membro do primeiro mandato do atual presidente, José Dirceu - que estava entre os quinze presos cuja liberação foi exigida.



A montagem colabora para manter o ritmo e interesse do filme, alternando habilmente os depoimentos individuais dos libertados com fragmentos de conversa entre os antigos “seqüestradores”. Neste grupo, chama atenção a ausência de Fernando Gabeira, autor do best seller O que é Isto, Companheiro? - que deu origem ao discutido filme homônimo de Bruno Barreto, filme que encarou sua matéria-prima quase como se fosse apenas um roteiro de filme policial. Por outro lado, quando o filme de Bruno foi exibido, muitas pessoas mais jovens acompanhavam a ação como se assistissem um filme de suspense, desconhecendo quase todo o episódio, fazendo comentários que deixavam bem claro que nem sabiam o desenrolar e nem mesmo o desfecho dos eventos. Para esses, o filme com tom mais ficcional pode até servir de introdução informativa, mas o documentário de Da-Rin tem passagens tão ou mais emocionantes – com a vantagem de manter um compromisso maior com os fatos, escutando os personagens reais que viveram os acontecimentos e incluindo uma postura reflexiva sobre aqueles momentos graves de nossa História recente. Neste sentido, a coincidência de lançamento, poucas semanas antes, do filme Batismo de Sangue, extraído de outro livro-documento sobre este trágico período, pode ganhar maior relevância para os jovens de hoje tentarem alcançar como foi viver naquela época com alguma consciência e informação sobre o que se passava além do que era accessível nos meios de comunicação sob intensa censura.



Bem distante do formato superficial de reportagem televisiva para mera informação didática, Hércules 56 cumpre importante papel documental ao registrar depoimentos variados de alguns dos principais envolvidos nos eventos, depoimentos que variam da maior emoção à mais cerebral reflexão, indo da revisão crítica do que foi feito à constatação de que se tratava de uma luta necessária, ainda que, para os olhos de hoje, conhecendo o desenrolar do que se sucedeu, facilmente questionável. Mas fica claro que os agentes e personagens reais dos fatos abordados estavam bem no “olho do furacão” e o filme permite atualização de dramas e dilemas de pessoas que pensavam um Brasil melhor. Franklin Martins afirma que estamos em um Brasil melhor, o que é verdadeiro e relevante do essencial ponto de vista de processos democráticos restaurados, ainda que tanto desalento e decepções com a política mesquinha e auto-centrada em interesses pessoais e de grupos permaneçam impedindo que os generosos ideais da época estejam perto de algumas - pequenas que sejam - concretizações. O filme desperta a vontade de que se possa prosseguir em seu método, enfocando o desenrolar da crise, incluindo outras “capturas” de embaixadores que se seguiram, assim como outros momentos cruciais da luta contra o regime ditatorial militar e suas conseqüências até os tempos atuais. Este documentário funciona ainda melhor do que algumas criações ficcionais sobre o período e até mesmo do que as mais bem-sucedidas adaptações de livros escritos sobre os que viveram a História.





# HÉRCULES 56

Brasil, 2007

Direção e Roteiro: SÍLVIO DA-RIN

Fotografia: JACQUES CHEUICHE

Montagem: KAREN HARLEY

Música: BERNA CEPPAS

Depoimentos: FLÁVIO TAVARES, JOSÉ DIRCEU, JOSÉ IBRAIN, MARIA AUGUSTA CARNEIRO RIBEIRO, MARIO ZANCONATO, RICARDO VILAS BOAS, VLADIMIR PALMEIRA, FRANKLIN MARTINS, DANIEL AARÃO REIS e outros.

Duração:94 minutos



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