O título internacional escolhido para L’Ivresse du Pouvoir”, que aqui, como em outros países, recebeu o nome de A Comédia do Poder, pode decepcionar o espectador. Não é bem o que se poderia esperar de uma “comédia” como algo capaz de provocar boas risadas, mas sim de um filme que usa uma boa dose de ironia e cinismo para tratar dos meandros e efeitos do poder desmesurado que suba a cabeças ambiciosas e vorazes. Logo de saída, enfoca os corruptos de colarinhos brancos: executivos, políticos e similares; mas não deixa de lado o poder dos "juízes de instrução" que teriam os cargos mais poderosos da França na investigação de delitos. Só que o filme ainda pode decepcionar bem mais ao ficar tão distante de qualquer grandeza minimamente comparável a outro uso do termo - como na “Divina Comédia” de Dante com o “Inferno” onde o poeta colocou os grandes pecados e pecadores de seu tempo.
A personagem central do filme é uma juíza que se chama Jeanne Charmant-Killman, interpretada com a habitual falta de simpatia e enorme competência por Isabelle Huppert, encabeçando o elenco de um filme de Claude Chabrol pela sétima vez. Ela começa por investigar, denunciar e mandar prender uma rede de altos funcionários que desviavam muito dinheiro público para auferir grandes vantagens particulares. Em princípio, estes seriam os tais portadores da “embriaguez do poder” do título original. A arrogância de pretender atingir metas e ambições “a qualquer preço” se aproxima do terreno da hybris (algo como desmesura ou descomedimento), a falha trágica para os antigos gregos, passível de provocar a nêmesis, ciúmes e justiçamento dos deuses que punirão o mortal que teve a ambição de ir além de seu métron, vale dizer: equiparar-se ao poder dos habitantes do Olimpo.
Ao longo do filme, entretanto, fica mais do que uma sugestão de que a juíza, ela mesma, está siderada com o poder que pretende exercer sem restrições, passando por cima de riscos para si própria, bem como dos efeitos colaterais de seus atos para sua vida conjugal - ou seja, ela também tem objetivos que quer atingir “a qualquer preço”. Mas esta equalização dos poderes e da arrogância de personagens que estão em posições éticas de suas vidas públicas totalmente antagônicas acaba por ser um dos pontos em que o cinismo do diretor Chabrol merece sério questionamento. O cineasta já atingiu resultados pertinentes e bem mais favoráveis quando esta sua habitual postura “distanciada” (ou cínica) encaixava bem com histórias apresentadas sem pré-julgamento, como em O Açogueiro (1970) ou em A Mulher Infiel (1969) (refilmado de forma menos "amoral" por Adrian Lyne em 2002 comoInfidelidade).
Mas o mesmo olhar “indiferente” cai bem mal para o tema deste filme. Afinal, cada profissão tem seus riscos inerentes, maiores ou menores. Por mais que um juiz possa sofrer a tentação de se sentir como um deus que separa os maus dos bons, espera-se que não se intimide na aplicação de leis que existem para manter a sociedade em patamar de civilização ordenada. Independentemente dos riscos que possa correr para manter a Lei. Esta deveria ser uma prática permanente no sentido de tentar minimizar a barbárie e selvageria do egoísmo permissivo que é capaz de privilegiar interesses egocêntricos e a passar por cima do respeito ao direito alheio e da coletividade. A prática profissional se apóia em características pessoais diferentes: afinal, sem uma dose saudável de exibicionismo nenhum ator sobe num palco; sem uma capacidade (sublimada) de “abrir” o corpo humano nenhum cirurgião usaria o bisturi; e sem capacidade de escuta, nenhum psicanalista pode atender seus pacientes. Os juízes podem se sentir poderosos e deles se espera que assim sejam na aplicação das leis, merecendo o poder que lhes foi atribuído - e que devem exercer com a maior imparcialidade possível.
Mas Chabrol sugere que a mesma atração pelo poder do qual abusaram os corruptos de seu filme, também atinge a juíza Killman - mesmo que suas atitudes morais e metas sejam tão radicalmente opostas. E neste aspecto, alguns nomes dos personagens também sugerem um olhar blasé que se pretende sarcástico: a juíza tem um sobrenome charmant (encantador), mas também “mata homem” (kill man). Muito pobre de espírito. Ainda soam como piadinhas sem graça as escolhas de “Parlebas” (Falabaixo ?) para um advogado que defende o primeiro corrupto preso, assim como um - inicialmente – sedutor colaborador da juíza é batizado pelos roteiristas (Chabrol e sua parceira de outros filmes, Odile Barski) como Sibaud - termo que pode ser homófono de “si beau, “tão bonito”. No teatro medieval, as chamadas “moralidades” giravam em torno de personagens apelidados de Everymen ou “Todomundo” no sentido de se referir a cada um de nós, sujeitos às tentações do mal, mas também com livre arbítrio para escolher o bem. Outros personagens tinham nomes alegóricos, alusivos a virtudes ou vícios; ou ainda eram simplesmente “O Pobre”, “O Rei”, etc.
Se Chabrol teve tal inspiração para nomear estes personagens, diferentemente dos autos medievais, usou-a como um recurso gratuito a meio caminho entre a moralidade e a imoralidade cínica. Com um agravante para nós, brasileiros: o risco de impunidade não nos oferecerá grandes surpresas em escândalos desgastados como nos que lemos todos os dias em jornais. Surpreendente talvez, uma certa paradoxal ingenuidade (?) em personagem tão pretensiosa como a juíza Charmant-Killman ao aceitar, sem malícia, certas atitudes de seus superiores, sem ao menos desconfiar de que estariam cerceando suas investigações que estariam atingindo círculos de poder ainda mais altos.
A pretensão também é uma marca na obra de Chabrol, um nome certamente importante na história do cinema francês como crítico de cinema dos anos 1950 e logo prolífico diretor da Nouvelle Vague seminal e responsável por quase 70 filmes em 50 anos. Mas sua filmografia é bastante irregular: a competência formal não é suficiente para salvar muitos de seus muitos filmes da mais absoluta mediocridade. Os mais recentes foram exibidos no Brasil (A Teia de Chocolate e A Dama de Honra), ao contrário de muitos outros que permanecem inéditos, e só fazem confirmar a impressão de que se trata de um artesão mais pretensioso do que realizado. Isto, quando não derrapa em filmes absolutamente lamentáveis. Mais uma vez ficamos longe dos acertos conseguidos em Amantes Inseparáveis, Mulheres Diabólicas, Madame Bovary ou Um Assunto de Mulheres. Não basta Chabrol ser admirador e conhecedor de Hitchcock (como François Truffaut também era) para fazer com que sua linguagem fílmica redunde em obras-mestras como as de seu ídolo, tal como Truffaut conseguiu tantas vezes e de forma bem pessoal. A comparação com ambos é demeritória para Chabrol, que aparece como sendo mais um grande cínico do que um grande cineasta.
# A COMÉDIA DO PODER (L’IVRESSE DU POUVOIR)
FRANÇA, 2006
Direção: CLAUDE CHABROL.
Roteiro: ODILE BARSKI, CLAUDE CHABROL.
Fotografia: EDUARDO SERRA
Montagem: MONIQUE FARDOULIS
Música: MATTHIEU CHABROL.
Elenco: ISABELLE HUPPERT, FRANÇOIS BERLÉAND, PATRICK BRUEL, ROBIN RENOUCCI, THOMAS CHABROL.
Duração: 110 minutos.
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