Mais de 25 séculos de existência de uma cidade cuja população chegava a um milhão de habitantes não foram suficientes para preservá-la: uma barragem colossal inundou tudo e está no cerne de Em Busca da Vida como representação emblemática (e concreta) do aceleradíssimo processo de virada capitalista na China.
Enquanto isso, milhares de pessoas, empurradas por uma verdadeira diáspora, perderam suas referências, contactos, endereços, ficando sem saber os destinos de seus amigos, vizinhos, parentes. Dois personagens serão acompanhados em suas buscas de reconexão: um homem à procura da ex-esposa (visando, mais do que tudo, a filha que tiveram) e uma mulher em busca do marido. No percurso errático desses dois, outros personagens vão surgir, acentuando a pequenez do humano frente à imensidão do processo histórico-econômico em marcha inexorável.
Para explicitar suas idéias, Jia Zhank-Ke se serve de uma vertente narrativa básica que é herdeira do mais radical neo-realismo rosselliniano (incluindo o datado uso de alguns não-atores no elenco), mas igualmente capaz de se permitir interferências de intenção poética e metafórica inusitadas - como a de uma construção que se desprende do chão e sobe como uma nave espacial. Em artes plásticas, isto talvez fosse considerado o que se chama de “intervenção”. Muito contemporâneo. Mas bem resolvido?
O Júri do Festival de Veneza 2006 e grande parte da crítica mundial parece achar que sim: que tudo o que Zhang-Ke vem fazendo é digno de prêmios e louvores. Já as platéias interessadas em encontrar a mesma satisfação dos críticos e jurados de festivais pode estar, em boa parte, sofrendo perplexidade e frustração ao correr para ver, no dia de lançamento, o suposto novo grande filme anunciado. Fala-se aqui daquele público que lê as colunas sobre filmes e que não vai ao cinema apenas para comer pipoca enquanto acompanha as “franquias” dos blockbusters.
Zhang-Ke parece seguir, com a sinceridade de quem acredita que essa é a melhor forma de discutir seus temas, uma cartilha de planos longos, longuíssimos, equilibrando-se entre o que parece ser um “despojamento” (apenas aparente) e uma rigorosa construção em seus enquadramentos e imagens. Algumas dessas cenas são mesmo caprichadas esteticamente, ajudando o espectador a suportar o que parece se prolongar por muito mais do que 108 minutos. Mas o desconforto que se instala na sala de projeção quase “pesa’ no ar.
O binômio tempo-espaço (tão bem desenvolvido por muitos grandes cineastas “arquitetos” de imagens) é aqui explorado de forma insistente, articulando os personagens que se perderam de seus “próximos” (agora distantes) com o processo histórico que ignora vidas prosaicas e os descaminhos onde tantos foram jogados sem a menor cerimônia: desapropriação, demolição de casas, de prédios, relocação. Vem à lembrança uma frase utilizada por Millôr Fernandes para falar do homem e sua saudade: “A casa ficava ali”. E vemos, quase sem cessar, demolições, demolições, demolições – trabalho do personagem masculino em busca da ex-mulher e da filha.
A questão é que, tal como a grandiosa barragem (realmente existente) ignorou os “pequenos” seres humanos, a forma contemporânea de se pretender um “cinema de nível” também atropela o interjogo do que se passa entre a tela e o olhar do espectador. Zhang-Ke não se importa de deixar as “pontas soltas” do enredo propositalmente esgarçado; nem de não “concluir” o trajeto de seus personagens; muito menos de estender a duração dos planos além de qualquer ação – ou inação.
Somos informados de um acontecimento significativo em um país distante do nosso, nos interessamos pela notícia, pelo tema (que é universal) e pelos personagens que nos guiariam para uma maior intimidade com as melhores intenções do filme. Mas o cineasta, escolhendo uma forma atenta aos cânones da contemporaneidade e uma linguagem que seria elegante para o que é considerado “atual”, não propicia a identificação afetiva do espectador, nem um eficiente distanciamento reflexivo - digamos, “brechtiano” - que o lado documental do filme poderia instigar.
Da mesma forma, as “intervenções” “poéticas”, tais como a bizarra cena do prédio que de repente “decola” (para enfatizar os espaços vazios deixados pelo questionado progresso?) ou a visão, ao longe, de um homem na corda bamba entre dois prédios em ruínas (que saudade do “Louco” de La Strada de Fellini...), só fazem provocar estranheza no que parece ser uma pretensa saída para não deixar o filme aprisionado ao “realismo” (ou neorealismo) de “natureza morta” - que seria a tradução literal do título com o qual vem sendo distribuído, Still Life.
Infelizmente, tais recursos que saltam do “realismo” à moda da reprodução da realidade em “um por um” para um “surrealismo” simplista de metáforas óbvias, não retiram o filme do clima de “vida estagnada” - que pode ser outra forma de traduzir still life. Repete-se uma antiga questão que era levantada algumas vezes sobre os filmes do recém-falecido Michelangelo Antonioni quando ele levava ao paroxismo suas cenas com “tempos mortos” em filmes sobre o vazio das vidas da alta burguesia: para se falar sobre o tédio é preciso que o filme seja “um tédio”? Para falar do vazio, “tempos mortos” e cenas dilatadas? Para retratar vidas estagnadas, um filme "parado"?
Para mostrar descaminhos, um enredo que não chega (por opção) a lugar nenhum? Para questionar a barragem, que para ser construída, espalhou pessoas e vidas, fazer um filme que cria outra barragem - ao acesso afetivo – e mesmo reflexivo – do espectador? Louvação de uma forma que se pretende nova e contemporânea, mas que repete velhos recursos sem uma verdadeira inovação criativa?
# EM BUSCA DA VIDA (Sanxia Haoren)
China/Hong Kong, 2006
Direção e Roteiro: JIA ZHANG-KE
Fotografia: YU LIK WAI
Direção de Arte: LIANG JIN DONG e LIU QIANG
Montagem: KHUNG JING LEI
Música: LIM GIONG
Elenco: HAN SANMING, ZHAO TAO, LI ZHUBIN, XIANG HAIYU, ZHOU LIN.
Duração: 108 minutos