Um ator desempregado, um grupo fechado (no caso, uma pequena empresa) e uma história de impostura são mesmo os ingredientes ideais para mais uma fábula social de Lars Von Trier. Com isso, ele é capaz de desfiar algumas de suas obsessões.
A delicada interação entre diretor e atores, por exemplo, tem aqui um reflexo na relação entre o ator que aceita passar-se pelo “grande chefe” inexistente de uma empresa colocada à venda e o chefe real, que o contratou. Para muitos críticos estrangeiros, Von Trier estava assim exorcizando sua convivência complicada com atrizes como Nicole Kidman e Björk. Seja como for, esse aspecto de O Grande Chefe responde, quando muito, por uma boa piada interna. O foco do filme, a meu ver, está em outro lugar.
Quem viu Os Idiotas e Dogville sabe que o assunto principal de Lars Von Trier é sempre a representação. Papel social e papel cênico se friccionam até a explosão ou a implosão. Da mesma forma, os espaços da representação – seja uma fábrica, um restaurante ou um palco riscado – são instrumentalizados para participar ativamente do processo. Não há cenários neutros/naturalistas em Von Trier.
O escritório de O Grande Chefe funciona assim como mais um palco, em que móveis e equipamentos interagem com os atores. À medida que o impostor se aprofunda nas questões reais da empresa e toma gosto pelo seu papel, instala-se uma rede de equívocos e o filme se aproxima do gênero comédia maluca, numa chave próxima de Os Idiotas, mas bem mais leve e “irresponsável”. No entanto, nada se perde do seu traço brechtiano. O humor provém justamente da maneira como o impostor alternadamente se identifica e distancia-se do seu personagem.
O próprio cineasta aparece em ação, quebrando aqui e ali o envolvimento do público com a trama. Mais uma vez, Von Trier explicita a manipulação do cinema, desmentindo cabalmente os que o acusam de, ao contrário, manipular o espectador.
Como a cada criação ele faz corresponder uma invenção formal, desta vez somos apresentados ao sistema Automavision – um computador que comanda aleatoriamente a posição da câmera, assim reduzindo o “controle” do diretor e dos atores sobre o quadro. Não há sequer o crédito de diretor de fotografia. As imagens fora de eixo seriam apenas bizarras, não fosse o tema do filme exatamente as noções de manutenção e perda do controle. O fato é que, mesmo nesse pequeno divertimento, Von Trier consegue ser provocante.
O GRANDE CHEFE (DIREKTØREN FOR DET HELE)
Dinamarca, 2006
Direção e roteiro: LARS VON TRIER
Automavision: PETER HJORTH
Montagem: MOLLY MARLENE STENSGÅRD
Elenco: JENS ALBINUS, PETER GANTZLER, FRIÐRIK ÞÓR FRIÐRIKSSON, BENEDIKT ERLINGSSON, IBEN HJEJLE
Duração: 99 minutos
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