William Friedkin teve seus minutos de glória (na verdade, foram alguns anos da década de 1970) a partir dos prêmios da Academia de Hollywood para Operação França, ao qual se seguiu o enorme sucesso de bilheteria baseado em um best-seller de terror com pitadas de misticismo católico, O Exorcista. Pensando bem, nada do que se orgulhar muito se a mesma década estava assistindo ao despontar de conterrâneos norte-americanos como Scorsese, Coppola e Spielberg – só pra ficarmos nos mais famosos e com lastro mais conseqüente.
Superestimado, Friedkin nunca mais tangenciou os sucessos de estima em prêmios ou de bilheteria, mostrando ser apenas um artesão razoavelmente eficiente em matéria de carpintaria cinematográfica à americana, com alguns resultados satisfatórios esparsos cercados de equívocos por muitos lados.
Não que ele não tenha tentado vôos mais ousados (para o conservadorismo ianque), por exemplo, em Parceiros da Noite, de 1980, que - apesar de conter uma daquelas interpretações magníficas de Al Pacino - escorregou no julgamento de “homofóbico”, exatamente para quem havia filmado uma das primeiras peças a abordar hábitos dos gays dez anos antes, em Os Rapazes da Banda. Dizem que um relançamento recente no exterior teria reabilitado Parceiros do “preconceito” que sofreu. A conferir - se chegar por aqui, nas telas ou em DVD. Mas, o que esperar de quem cometeu Jade em 1995, algo próximo aos mais medíocres filmes de “sexploitation” de Adrian Lyne ou até mesmo de Zalman King?
O que se observa na filmografia de Friedkin é um eterno retorno aos filmes de ação, provavelmente tentando um novo Operação França, do qual teria se aproximado com Viver e Morrer em Los Angeles; ou aos filmes de terror como A Árvore da Maldição, certamente visando um novo Exorcista - que não aconteceu. Outras tentativas, talvez em busca de prestígio, foram as refilmagens de Salário do Medo, de Clouzot, e de Doze Homens e uma Sentença, de Sidney Lumet - para a TV, de onde a trama era originária antes mesmo de ser levada às telas grandes.
Uma expectativa de prêmio da crítica em Cannes (2006) pode influenciar para a decepção com este Possuídos - mas não muito. Um de seus problemas centrais parece estar na transposição da peça original para o cinema feita pelo mesmo autor do texto teatral, sem que nem o escritor nem o diretor tenham conseguido afastar Bug (título original) do aprisionamento à fôrma de “teatro filmado” sem maior expressão fílmica. Dezenas de filmes já foram feitos em ambientes claustrofóbicos e quase - ou totalmente - em interiores com resultados cinematográficos de primeira ordem – o que, infelizmente, não acontece aqui.
A edição rápida das apocalípticas cenas finais com interpretações exaltadas e desesperadas da dupla Michael Shannon e Ashley Judd - gritando suas falas ensandecidas em ritmo de metralhadora - pode até distrair, mas o clima de terror “grand-guignol” revela o desespero maior de Friedkin, provavelmente saudoso do sucesso com os vômitos de abacate de Linda Blair como a menina possuída de O Exorcista. Aliás, o filme se perde especialmente na segunda metade em que esta apelação ao grotesco domina tudo. Mesmo o desempenho de Michael Shannon, exemplar em suas primeiras cenas quando passa com perfeição o estado psíquico fronteiriço de seu personagem, fica dominado pela obviedade patética do desfecho na base da loucura a dois (folie à deux).
A peça teria o mérito (questionável) de demonstrar uma verossímil observação psiquiátrica da evolução (ou involução) por parte da personagem feminina, que mal dissimula sua fragilidade interna com uma apenas aparente força exterior de “durona”, ao caminhar para a simbiose com a loucura do outro que domina sua visão de mundo. Ashley Judd também está ótima em transmitir a falsa segurança inicial de ‘Agnes’ (nome associado ao cordeiro sacrificial?) que se revela pérvia aos delírios de ‘Peter’. Carente, mulher de bandido que a espanca, mãe de uma criança desaparecida de suas vistas para sempre, Agnes é a “parte fraca” que se deixa dominar pela paranóia delirante de Peter, potencialmente propensa que seria desde sempre a embarcar em qualquer canoa furada que lhe ofertasse a ilusão de grandeza jamais alcançável.
O cinema de ficção já mostrou cenas de loucura explícita com precisão científica - mas nem sempre isso faz bons filmes. Polanski, em Repulsa ao Sexo, conseguiu melhores resultados para aulas de psiquiatria do que como cineasta quando se prendeu ao que era quase só “jornalístico” na semiologia psiquiátrica de um surto esquizofrênico da manicura interpretada por Catherine Deneuve. Foi mais feliz ao disfarçar Bebê de Rosemary como filme de terror – mas que também podia ser visto como um dissimulado caso de psicose gravídica e pós-parto. A ambivalência é a alma do negócio quando se consegue a sutileza que escapa ao óbvio literal.
Com Buñuel, o resultado foi brilhante: dissecou uma paranóia de ciúmes em O Alucinado ao mesmo tempo em que inaugurava uma galeria de personagens burgueses que queria criticar, tal como o fantasioso Archibaldo de La Cruz de Ensaio de um Crime - e que atingiria a perfeição em Bela da Tarde - com a mesma Deneuve de (e com quase a mesma) Repulsa ao Sexo.
De que servem filmes corretos do ponto de vista psiquiátrico e psicanalítico? Lacan dava aulas sobre paranóia exibindo O Alucinado, mas o filme também pode ser apreciado pelos ângulos surrealista e de crítica social, caracterizando uma polissemia preciosa das obras com múltiplas leituras que se deixam ver e rever com renovada admiração. Já Spider, de Cronenberg (outro superestimado cultor de cenas grotescas e gratuitas a la “grand guignol”), parece um tratado de explicação psicanalítica de uma “case story” com pouco mais de atrativos além deste. Pior ainda, a loucura no cinema, com raras e honrosas exceções, tende a estimular o preconceito de mostrar esquizofrênicos como assassinos em potencial em uma freqüência infinitamente maior do que as estatísticas médico-forenses reais.
Se em O Inquilino Polanski ganhou um álibi pela leitura de uma metáfora da xenofobia em outro filme com gratuidades de bizarrices atribuídas à perda da razão, pode-se tentar reabilitar este Possuídos pela questão da paranóia americana acentuada na atualidade (embora venha desde muitas décadas atrás). Para defender esta tese poderiam argumentar com as cenas iniciais em tomadas aéreas (?) e dos telefonemas que ‘Agnes’ recebe sem que ninguém fale nada do outro lado da linha - e que ela atribuía ao marido recém-saído da prisão, mas que ele negará ter dado. A ambigüidade do filme fica em cenas que não distinguem delírio de fatos diegéticos, o que acaba soando como um recurso gratuito de ficar em cima do muro. E o que fica de impressão final é de que tudo não passou de maior gratuidade ainda para explorar mais uma “case story” de loucura, agora a do tipo que é implantada por um paranóico mais dominador em uma personalidade mais frágil que se deixa dominar numa “folie à deux”. Bom para estudantes de psiquiatria? Talvez sim, talvez nem isso, pois a sensação de exploração da loucura de forma grosseira deverá incomodar mais do que trazer a comum admiração por parte de leigos que ficam ingenuamente fascinados com os desvios psíquicos aos quais estamos sujeitos.
E os que não curtem sadismo de grand guignol nem verão muita diferença entre o desfecho do filme de Friedkin e o de uma lamentável reapropriação do argumento de Janela Indiscreta, de Hitchcock, misturada com o desenvolvimento do (já) antigo filme teen de vampiros (na época) atualizados, A Hora do Espanto: por aqui está coincidentemente sendo exibida com o nome de Paranóia (título original: Disturbia).
# POSSUÍDOS (BUG)
EUA, 2006
Direção: WILLIAM FRIEDKIN
Roteiro: TRACY LETTS, baseado em peça teatral de sua autoria.
Fotografia: MICHAEL GRADY
Montagem: DARRIN NAVARRO
Música: BRIAN TYLER
Direção de Arte: FRANK ZITO
Elenco: ASHLEY JUDD, MICHAEL SHANNON, HARRY CONNICK JR., LYNN COLLINS, BRIAN F. O’BYRNE.
Duração: 102 minutos
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