Alice é manicure, casada há duas décadas com Lindomar que trabalha como motorista de táxi - embora passe boa parte do dia jogando com os amigos em mesas de bar ou tendo casinhos extraconjugais com garotas bem mais novas. Três filhos homens ainda jovens residem com eles. Na verdade, todos moram com a mãe de Alice, Dona Jacira, que é a proprietária legal do apartamento bem antiguinho na periferia de São Paulo. Embora idosa e com a saúde combalida, é Jacira quem cuida da casa, trabalhando o dia inteiro como se fosse uma empregada doméstica superexigida e não remunerada. Há indícios de que quem mais contribui financeiramente para manutenção da família é Alice.
Embora tudo esteja bem longe de ser um mar de rosas, a descrição que Alice faz para as clientes do salão onde trabalha sobre sua vida conjugal e familiar é edulcorada, revelando um wishful thinking ou mesmo uma dissimulação intencional dos percalços do dia-a-dia. Lindomar também é visto conversando com um passageiro de seu carro pintando sua vida melhor do que é. As insatisfações são negadas, consciente ou algo inconscientemente, varridas para debaixo do tapete.
É Dona Jacira quem vai descobrindo o que cada um teria a esconder dos demais: por exemplo, ela fica sabendo dos casos do genro por retratos ou bilhetes que ele esquece nos bolsos das calças que a sogra lava; um dos netos recorre a expedientes inconfessáveis para ganhar um dinheirinho extra. O que ela não sabe, o espectador fica sabendo através de uma narrativa naturalista sem o falso “realismo” de novelas da TV. A câmera está sempre bem perto dos atores, acompanhando-os (sem tremores incômodos) pelos exíguos espaços do imóvel.
O comportamento masculino acomodado é exemplarmente visto em cenas que mostram os rapazes refestelados no sofá ou em poltronas, mais do que assistindo, "sendo vistos pela TV" ligada, sem conversarem, entediados, em inércia, sem dedicar a menor atenção à avó em permanente atividade doméstica. Esta senhora espelha bem uma realidade de nossa classe média baixa (ou nem tanto) onde os mais idosos ainda fazem jus a alguma aposentadoria menos infame dos que os aposentados mais recentes, pois, mesmo recebendo pouco, ainda recebem mais do que familiares mais jovens em fase ativa de trabalho. Os mais velhos conseguiram, muitas vezes, ter uma casa própria que é aonde as gerações seguintes se acotovelam.
O filme de estréia (em longa metragem) de Chico Teixeira é bastante pertinente no retrato desconfortável da classe média brasileira e de sua realidade social e moral em crise - que já é crônica. Todo o elenco de atores corresponde plenamente ao clima pretendido, mas não se pode deixar de destacar a composição excepcional de Carla Ribas no papel-título e de Berta Zemel como a matriarca desconsiderada, explorada e que se deixa explorar: é o seu “papel” familiar de extremo conformismo.
Ressalvas podem ser feitas ao desenvolvimento do roteiro que condensa um certo acúmulo de “pequenos” atos de mau-caratismo em seus personagens, quase se aproximando do caricato. Por outro lado, a complacência de cada um para suas atitudes egoísticas ou/e pouco éticas é demonstrada com mais sutileza e sem um olhar moralista excessivamente condenatório.
O cinema brasileiro de ficção e de documentários vem privilegiando tradicionalmente abordagens de pobres e miseráveis, desinteressado da espremida classe média. Quando aparece na tela, aparece sob a forma mais idealizada e atenuada de A Grande Família. Já era hora de abordar as repercussões do achatamento sócio-econômico que faz essa camada da população se degradar. A alienação da dissimulação, intencional ou menos consciente (auto-engano) é bem caracterizada. Mesmo com eventuais críticas que se possa fazer ao roteiro quando condensa muita coisa em uma família tão pequena, sem nada da grande família televisiva, este filme se mantém interessante e pertinente.
# A CASA DE ALICE
Brasil, 2007
Direção: CHICO TEIXEIRA
Roteiro: CHICO TEIXEIRA, JULIO PESSOA, SABINA ANZUATEGUI e MARCELO GOMES
Elenco: CARLA RIBAS, BERTA ZEMEL, ZÉCARLOS MACHADO, VINICIUS ZINN, FELIPE MASSUIA, RICARDO VILAÇA, RENATA ZHANET, LUCIANO QUIRINO
Duração: 90 minutos
Site oficial: www.acasadealice.com.br