A comédia dramática “Intocáveis” mexeu com a autoestima do povo francês ao lidar com as históricas tensões sociais no país de maneira conciliadora, mostrando ser possível a amizade pura e verdadeira entre um milionário branco e seu enfermeiro de origem africana, morador do banlieue e ex-presidiário. Trazia diálogos e situações bem humoradas que, com um bom roteiro e ótimos desempenhos dos atores François Cluzet e Omar Sy, soavam bastante realistas, colocando o filme num patamar acima da média do cinema francês de ambições mais comerciais que artísticas.
Os diretores Olivier Nakache e Éric Toledano adotaram a mesma fórmula, com algumas variações, em seu filme seguinte, “Samba”. E de certa forma é o que também vemos em “Mais que especiais”, cujos protagonistas, o judeu Bruno Haroche (Vincent Cassel) e o muçulmano Malik (Reda Kateb) se unem por uma nobre causa social. Bruno comanda uma instituição filantrópica, porém clandestina, que abriga jovens com autismo severo que não conseguem viver com os familiares, nem se adaptam ao tratamento oferecido pelo Estado. Sua dedicação é comovente, assim como a de Malik, responsável por uma ONG que busca dar oportunidade de trabalho a jovens de regiões carentes de Paris.
É uma aposta ousada e digna de elogios levar para as telas o drama dos autistas severos, tradicionalmente marginalizados também nas artes. Como não há muito espaço para momentos de fofice e leveza como em filmes como “Rain Man” ou na série “Atypical”, o roteiro insere um personagem que está num espectro autista mais leve que os demais para garantir algum humor com sua obsessão por acionar o alarme de emergência em vagões e estações de metrô.
O problema do filme é que os realizadores estão tão preocupados em ressaltar a importância deste tipo de trabalho sem fins lucrativos e a necessidade de que o governo o tire da clandestinidade, que se nota o desleixo com os aspectos cinematográficos. Por mais que os atores tenham carisma, o roteiro é preguiçoso, esquemático e não abre brecha para nada que fuja do seu tema principal. O sacrifício da vida pessoal de Bruno em função da sua clínica (chamada “A voz dos justos”), por exemplo, é tratado superficialmente e de maneira anedótica através das fracassadas tentativas de encontros amorosos arranjados. No fim das contas, MAIS QUE ESPECIAIS soa como um filme institucional, daqueles em que nos créditos finais aparece o endereço da ONG para doações. E isso, paradoxalmente, acaba por tirar força de sua mensagem.
(Publicado originalmente em O Globo de 25.2.2021)