Críticas


SEMPRE BELA

De: MANOEL DE OLIVEIRA
Com: MICHEL PICCOLI, BULLE OGIER, RICARDO TRÊPA.
22.07.2010
Por Luiz Fernando Gallego
<b>ELA, NEM TÃO BELA; O FILME, NEM TÃO BOM</b>

Texto revisto a partir do que foi publicado no site em 21/09/2007, por oportunidade da exibição do filme no Festival do Rio daquele ano



Manoel de Oliveira, do alto de seus respeitáveis 97 anos em 2006, filmou Sempre Bela (Belle Toujours) como uma espécie de seqüência crepuscular de Bela da Tarde (Belle de Jour), uma das mais famosas realizações de Luís Buñuel, lançada em 1967.



O melhor olhar sobre Sempre Bela seria, talvez, o que supõe que Oliveira está (como em Vou para Casa) refletindo sobre o envelhecimento. Neste caso, o envelhecer de dois personagens antípodas: ele, Henri Husson, um homem que não mudou nada com o tempo; e ela, Séverine Serizy - que pretende ter mudado.



Ele, um homem já idoso que bebe muito e que, no passado, teria indicado à esposa de um grande amigo uma casa de rendez-vous aonde ela foi prostituir-se durante as tardes (ao mesmo tempo em que evitava relações sexuais com o marido). Ela, essa tal bela da tarde de quatro décadas atrás - agora viúva - e que só aceita reencontrar-se com Husson para que ele lhe diga se teria - de fato - contado ao seu marido (que aparecia mudo e aleijado no final do filme de Buñuel pelo tiro de um amante dela) onde é que Séverine passava boa parte do dia.



Seria melhor tentar esquecer o filme original de referência, já que, como praticamente toda a obra buñueliana, Bela da Tarde primava pela ambigüidade, especialmente quanto à indiferenciação do que seriam as fantasias de Séverine e o que seria a “realidade”. Se o filme de ’67 for levado em conta, este Sempre Bela parte de premissas equivocadas que não sustentariam satisfatoriamente tal “continuação” geriátrica. Por exemplo, em Buñuel não há dúvida de que – seja na “realidade”, seja na fantasia da personagem feminina -, Husson contou ao marido dela sobre sua vida dupla. Não haveria porque Séverine querer tanto saber dele se isto aconteceu ou não. No filme original ele dizia que iria denunciá-la e pouco depois víamos o marido, paralítico em cadeira de rodas, com uma lágrima escorrendo pelo rosto.



Por outro lado, o marido de Séverine levantava-se logo em seguida ao take da lágrima, e o filme de 1967 se fechava em círculo, com este agora aparentemente ditoso casal vendo, pela janela, a mesma carruagem da cena inicial (que na abertura levava Séverine para ser chicoteada pelo marido - no que era certamente um devaneio dela). A partir desta “surpresa” tipicamente buñueliana e desconcertante poderíamos questionar se o marido “curado” seria apenas mais uma fantasia (agora “reparadora”) da moça - ou se todos os eventos que considerávamos como “factuais” (as idas ao bordel, o amante asqueroso e o tiro no marido) não passavam de outros cenários de fantasias masoquistas daquela esposinha burguesa, frígida e reprimida.



Na diegese buñueliana não importam os fatos "reais", mas o relato que ele fazia da realidade psíquica de seus personagens (e da nossa), mais do que o que consideramos como "objetivo", factual e supostamente compartilhável, mas que pode ter tantos ângulos e pontos de vista divergentes quantos são os envolvidos.



Esqueçamos, pois, o filme que deu origem a este? Mas é difícl: por exemplo, no bar onde Husson (encarnado pelo mesmo ator, Michel Piccoli) vai beber vemos um pequeno quadro retratando uma mulher deitada de costas, com farto traseiro calipígio, tal como no prostíbulo de Madame Anaïs onde Séverine ia satisfazer suas perversões. Se não for o mesmo quadro, é muito parecido - e tal semelhança, decididamente, não é mera coincidência: Husson olha para a pintura de modo significativo, como que chamando a atenção do espectador.



Se conseguirmos deixar de lado a referência fundamental para o filme de 2006 - ou imaginando um público que não conheça a obra anterior – o que temos agora é a situação básica de um homem que sabe do passado de uma mulher e a persegue depois de vê-la casualmente em um concerto. Ela foge dele, só aceitando um encontro para jantar pretendendo descobrir se ele a havia denunciado ao marido - ou não.



O enredo não vai além do episódico e limitado desta situação, com uma opção de certa forma “minimalista”: é mesmo um filme breve, de apenas 68 minutos. Parte de seu tempo fica por conta de uma orquestra executando movimentos da Oitava Sinfonia de Dvorak; e outra parte mostra Husson-Piccoli em um bar conversando com o rapaz que o serve, enquanto duas prostitutas, uma mais velha e outra mais nova, observam a conversa dos homens no balcão. A mais velha deseja o barman jovem e a mais jovem questiona o que seria "idade avançada", sugerindo que acha Husson ainda interessante (os compassos e descompassos das idades?).



O barman, interpretado por Ricardo Trêpa, neto do diretor, aparece muito mal em confronto com o experiente Piccoli – não só por seu francês com forte sotaque -, mas porque está mesmo canhestro como ator em falas que funcionariam como uma espécie de contraponto (entre crítico e complacente) para com as narrativas “picantes” de Husson.



Tomadas de Paris em planos fixos intercalam as cenas, mesmo que longos planos fixos já tenham se tornado um cacoete cansativo e frequentemente gratuito, mas tido (ainda?) como boa linguagem de griffe no cinema contemporâneo, mesmo que gratuitos. Uma estátua de Joana D’Arc também é insistentemente filmada, talvez uma metáfora (?) da questão feminina face à eterna incompreensão masculina. Afinal, a “donzela de Orleans” é chamada de “bruxa” em peças históricas de Shakespeare; e – a não ser para os que cultuam sua beatificação pela igreja – questões de sexualidade, feminilidade, histeria ou delírios são tão fortes nos relatos sobre Joana como na personagem original de Séverine.



O TRECHO QUE SE SEGUE PODE NÃO SER DO INTERESSE DE QUEM PRETENDE VER O FILME

Tudo se encaminha para o que deveria ser um “grande encontro” (ou desencontro) entre Husson e Séverine, oportunidade em que ela renega o seu passado, dizendo que o envelhecimento diminuiu suas inclinações sexuais chegando a aventar a hipótese de terminar seus dias em um convento. Ela acha que mudou. A perversão sádica de Husson (que certamente não mudou nada) não compreende que a atual religiosidade de Séverine pode ser apenas mais uma variação das mesmas questões mal resolvidas de sua sexualidade: antes, prioritariamente masoquistas (com a contrapartida sádica no negaceio sexual para com seu polido marido); agora, seguindo a máxima de Millôr Fernandes segundo a qual “a pior perversão é a abstinência sexual”.



A cena do encontro dos dois para jantar – cena em que os personagens ficam sem trocar uma palavra em um longo plano-seqüência com a câmera fixa enquanto eles são servidos, bebem e comem – e a conversa que se segue em outro longo plano, quase às escuras, com as velas se apagando lentamente, confirmam a elegância formal com uma certa dose de ousadia e louvável vitalidade de um diretor centenário. E o desfecho da “grande questão” desta Séverine de 2006 não chega (ainda bem !) a destruir a ambigüidade que enriquecia os personagens de 1976. Mas a presença de um galo, ainda que belamente emoldurado através da porta que dá para o corredor iluminado da sala de jantar quase às escuras, fica apenas como uma parca homenagem (?) gratuita ao bestiário dos filmes de Buñuel: havia um galo no desfecho de El Bruto (1952) e um urso na mansão onde os burgueses ficavam aprisionados em O Anjo Exterminador (1962); um avestruz na cena final de O Fantasma da Liberdade (1974) e uma girafa em A Idade do Ouro (1930).



(Buñuel e os surrealistas diziam que a girafa era um animal surrealista por excelência e quando lhe perguntaram sobre o urso na casa de O Anjo Exterminador e se tal animal representava a antiga URSS, ele respondia que usou um urso porque pedira uma girafa ao zoológico, mas não havia girafas disponíveis...)



Considerando a escandalosa liberdade imagética de Buñuel, chega a soar arrogante a concepção de Manoel de Oliveira sobre seu colega espanhol (lida em material de divulgação do filme quando de seu lançamento europeu), chamando o espanhol de “ingênuo”, pois teria uma “visão cética do ser humano”. Para Oliveira, Buñuel mantinha uma crença latente no Deus que ao mesmo tempo desprezava; e teria “trocado a idéia do ‘Mistério’ pela hipotética existência de Deus” - que, aos olhos buñuelianos (supõe Oliveira), seria um criador que deu origem a um ser tão perverso como somos nós. Oliveira acha que Buñuel considerava que só um deus desleal é que teria criado um ser tão preso aos instintos. Exatamente o que estaria sendo questionado pela atual Séverine retomada e que tenta se voltar para uma certa espiritualidade, ainda que tardia e comodamente amansada pelo declínio biológico do erotismo físico. Cabe o questionamento: quem está mesmo sendo “instintivista”? quem aparece como mais cartesiano e pouco afeito ao "mistério´? E como se pode afirmar que Buñuel teria trocado o “mistério” por qualquer outra concepção face à irreverência de todos os seus filmes - que prescindem de "explicações" para serem admirados?



Afinal, pouquíssimos artistas conseguiram manifestar tão precisamente os processos primários inconscientes descritos desde Freud. Buñuel era avesso a interpretações para seus filmes, ainda que as tolerasse com certo distanciamento. Mas preferia que a estranheza dominasse os sentidos dos que entravam em contacto com suas cenas inquietantes e insólitas.



Arrogante - e em alguns aspectos até mesmo ingênua - é, sim, esta visão de Oliveira, infinitamente menos complexa do que o painel deixado por Buñuel. Tal como em sua outra “metáfora” (muito concreta) do navio prestes a explodir com a personagem portuguesa que era professora de História - mas de onde se salvavam o capitão ianque e passageiras de outros países (alguns mais ricos) da Comunidade Européia (Um Filme Falado, 2003).



Este prosseguimento tardio de Bela da Tarde (origem da qual acaba sendo impossível ser desvinculado) acaba por oferecer um quadro simplista e bem menos complexo do que Buñuel foi capaz de nos dar.



Catherine Deneuve, a Séverine original, teria alegado incompatibilidade de agenda e não aceitou o papel que acabou com Bulle Ogier (que participou apenas de outro filme de Buñuel, O Charme Discreto da Burguesia). Maldosamente, chegou a ser dito que a atriz não quis aparecer mais velha como a personagem que criou anteriormente em plena juventude - embora continue filmando com a silhueta bem mais roliça, inclusive em outros filmes de Manoel de Oliveira. Mas seja como for, Deneuve fez bem: ela é quem permanecerá sempre bela, mesmo envelhecida, e longe das questões insatisfatoriamente desenvolvidas neste prosseguimento extemporâneo e sem individualidade própria.



E Oliveira, com toda a consideração que merece por sua bravura indômita de permanecer filmando aos 101 anos, pelo menos desde O Convento não fez nada que se equipare até mesmo aos menos realizados filmes de Buñuel.



# SEMPRE BELA (BELLE TOUJOURS)

Portugal/França, 2006

Direção e Roteiro: MANOEL DE OLIVEIRA

Fotografia: SABINE LANCELIN

Montagem: VALÉRIE LOISELEUX

Figurinos MILENA CANONERO

Elenco: MICHEL PICCOLI, BULLE OGIER, RICARDO TRÊPA.

Duração: 68 minutos

Site oficial: http://www.filbox.com/belletoujours/

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