Críticas


CABEÇA DE NÊGO

De: DÉO CARDOSO
Com: LUCAS LIMEIRA, NICOLY MOTA, JESSICA ELLEN
21.10.2021
Por Maria Caú
Qual o significado da palavra disciplina numa sociedade de opressão?

Quando da exibição do filme na Mostra de Tiradentes de 2020, um dos últimos eventos presenciais de cinema no país antes da pandemia, o diretor o diretor Déo Cardoso abriu a sessão de Cabeça de nêgo declarando que seu longa, uma das três obras realizadas a partir do único edital afirmativo para longas-metragens no Brasil, era antes de tudo um trabalho muito sincero. Pois é justamente essa sinceridade que o espectador sente pulsar ao longo dos 85 minutos de projeção. Acompanhamos a trajetória de Saulo (Lucas Limeira), um adolescente que reage com uma pequena violência a um insulto racista em sala de aula e, indignado por ser o único ameaçado com uma possível advertência ou expulsão, enquanto o colega branco fica ileso, decide permanecer nas dependências do colégio. Seu ato de desobediência civil, inspirado nas leituras que vinha fazendo, em especial os textos de Angela Davis e o percurso dos Panteras Negras, impulsiona um movimento coletivo de denúncia contra as condições da escola e os posicionamentos dos seus dirigentes, que se espalha como pólvora pelo corpo estudantil e ganha enorme projeção através das redes sociais.

O primeiro plano do filme, um plano-sequência que começa com Saulo de costas, colando cartazes do movimento político estudantil no qual se insere, já explicita a discussão a que o filme conclama. Em seu uniforme escolar lê-se claramente o lema da escola: “A disciplina é a fonte para o futuro”. Mais adiante, veremos no brasão o ano de fundação do estabelecimento de ensino, que traz o nome de um militar, major Altair Andrade: 1964. Tomando esse conjunto de elementos, o filme questiona: qual o significado da palavra disciplina numa sociedade de opressão? A afirmação do direito de voz do corpo discente, que também passa pelo agudo reconhecimento das perseguições sofridas pelos estudantes negros (e aqui o espaço estudantil é um reflexo duro do ambiente social mais amplo) vai de encontro aos interesses dos dirigentes e, à medida que o conflito se adensa, se expõem as engrenagens de um sistema que tem por objetivo calar. Se a opressão disfarçada de disciplina silencia violentamente, como reencontrar o espaço da voz, coletiva e individualmente? Em mapear alguns desses caminhos (as articulações comunitárias, o conhecimento e a memória, o pensamento estratégico etc.), ainda que didaticamente, se encontra a grande força de uma narrativa bastante emocionante. Nesse contexto, um momento se destaca: uma passagem de tempo que transcorre por meio de um travelling em que deixamos Saulo, lendo sozinho na sala de aula vazia, para retornar a ele, enquanto acompanhamos as mudanças de luz do anoitecer numa parede em que diversas pichações pululam como possibilidades clandestinas de permanência da pluralidade de vozes abafadas.

Há deslizes pontuais, soluços narrativos (o embate direção versus alunos escalona rápido demais), de desenvolvimento de personagem (todos os dirigentes brancos são maquiavélicos, o que leva um filme muito realista para um tom um tanto farsesco em alguns pontos) e em termos de mise-en-scène (as cenas das reuniões da direção são particularmente engessadas). Nenhum deles, no entanto, tira do filme sua capacidade de vibrar a sinceridade com que Déo Cardoso pauta seu fazer artístico. Além disso, a obra cumpre um papel educativo importante, papel que o cinema recusa muitas vezes em prol de um caminho mais sutil ou formalista. Ao citar (literalmente projetar no corpo do personagem central) figuras caras para o movimento negro, como Malcolm X, Martin Luther King, Carolina Maria de Jesus e Nelson Mandela, e falando aos jovens, e aos jovens negros, o filme constrói um arcabouço de referências para embasar o processo de transformação social que ele retrata e no qual (ao que parece) deseja se inserir. Ao fim, quando as cenas de violência contra os estudantes se mesclam a cenas documentais de manifestações populares reprimidas pela polícia, essa ligação ganha contornos ainda mais destacados. No plano final, o protagonista encara o espectador num espaço indefinido (estaria na escola? preso? morto?) e, pleno da voz que reivindicara para si, parece perguntar em silêncio: o que afinal quer dizer disciplina?


JustWatch.com
Voltar
Compartilhe
Deixe seu comentário