Publicado originalmente durante a 45a.Mostra Internacional de Cinema SP
Eu gostaria muito de ter o distanciamento necessário para escrever uma crítica de cinema tradicional sobre o brilhante Bergman Island, novo filme da diretora francesa Mia Hansen-Løve, uma das dez sessões simultâneas de abertura da 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. A realidade, no entanto, é que a experiência de retornar à sala de cinema num festival tão pulsante justamente para ver um filme que debate o lugar da memória (i)material do cinema e sua relação com o fazer artístico na contemporaneidade me obrigou a olhar para a minha relação com os ambientes físico e emocional do cinema de forma radical, me obrigando a iniciar este texto com a palavra interditada para a crítica: eu.
Eu. Eu estive ali, na sala de cinema, no Cinesesc da rua Augusta, em São Paulo. Usei uma máscara, assisti ao filme com lugares bloqueados à minha volta, marcados com capas vermelhas, à distância de quem me acompanhou, numa sala semilotada (completa para sua capacidade pandêmica) em que a energia do público era a um só tempo a mesma que eu já conhecia e uma nova, diferente, um pouco mais comedida, risos abafados pelas máscaras que ninguém parece ter retirado em respeito aos protocolos informados, após uma longa fila de conferência de vacinas e medição de temperatura que fez o filme atrasar cerca de meia hora. Todos os espectadores pareciam compartilhar a sensação de estar fazendo algo banal de forma inteiramente nova, como um destro que de repente resolvesse manejar uma faca com a mão esquerda. O cinema ainda era o cinema, mas minha máscara me incomodava um bocado, devo admitir.
Até que o filme começou. Bergman Island é um mergulho nas águas profundas da Ilha de Faro, refúgio e morada do cineasta sueco Ingmar Bergman, um dos nomes mais ressonantes da História do Cinema. Aqui, diferentemente de documentários como Invadindo Bergman (dir.: Jane Magnusson & Hynek Pallas, 2013), vemos Faro em sua recriação ficcional, orquestrada pela comovida e comovente imaginação da diretora. A jornada em redemoinho tem por personagens condutores um casal heterossexual de diretores-roteiristas, ele mais velho e mais estabelecido do que ela, que viaja para a ilha para trabalhar em seus novos projetos, ali encontrando uma inspiração que é – para ele – um sopro suave e – para ela – um torvelinho fora de controle. Tim Roth e Vicky Krieps dançam com destreza a coreografia de um afastamento que jamais se completa, enquanto suas histórias incorporam a ilha, esse pedaço de terra flutuante e voluntariosa. As narrativas em curso são todas, como em dado momento define ele falando apenas do seu roteiro em processo, “sobre como coisas invisíveis circulam ao redor de um casal”. Enquanto ela busca certa coerência, para sua trama e para suas paixões (incluindo Bergman, que ela ama e odeia, questionando seu “gênio criador” e a forma como ele lidava com as mulheres e com a morte), ele caminha como um turista mais tradicional, pronto para entrar num Safári Bergman com outros felizes curiosos – e aqui a diretora parece alfinetar todos nós, cinéfilos, com nossos cultos particulares que não passam, em última análise, de parques temáticos para intelectuais, cuja fruição muitas vezes não difere de uma viagem infantil à Disneylândia. Na cama do temível quarto do divórcio (já que ali fora rodado Cenas de um casamento), ele lê O inferno de Dante e ela dorme com uma camisa azul em que se lê “Paraíso”: já estão, ambos, condenados.
Quando a narrativa se abre em mise en abyme para mostrar tão somente a criação dela, Mia Hansen-Løve debate com enorme vigor as barreiras da autenticidade artística para uma mulher, ainda mais altas para uma mulher que ama um homem, talvez intransponíveis para uma mulher artista que ama um homem artista, pois as aspirações criativas dele são sempre mais alcançáveis que as dela – ou pelo menos o jogo do mundo assim o prova. A realizadora então pergunta: “Como um homem pode amar uma mulher artista?” e “Como uma mulher artista pode ser amada por um homem?”. É na dissonância entre essas duas perguntas aparentemente idênticas que o filme pulsa com a força de tudo que é invisível, mas que ainda assim se impõe. Como o tiquetaquear do relógio que a personagem central tenta em vão parar, tão presente no universo bergmaniano como presságio da morte implacável. Como Ingmar Bergman, já morto, mas ainda sentado em sua cadeira na fileira da frente de seu cinema, na fileira da frente do cinema.