Desde Ferrugem, o diretor Aly Muritiba parece preocupado em investigar as razões psicológicas ou sociais que levam homens brancos a se engajarem em comportamentos abusivos ou violentos. Neste novo trabalho, intitulado poética e apropriadamente Deserto particular, selecionado para representar o Brasil no Oscar 2022, somos apresentados a Daniel Moreira, um policial afastado do trabalho e que espera o julgamento da corporação após ter espancado um jovem em circunstâncias jamais esclarecidas para o espectador (se trata de um surto motivado talvez pelas pressões cotidianas a que o protagonista, que cuida praticamente sozinho do pai demenciado, está submetido). De fato, aqui, como em Ferrugem, o roteiro (este escrito pelo diretor em parceria com Henrique dos Santos) se detém nos detalhes do cotidiano do personagem central, que parecem articulados para funcionar como atenuantes numa narrativa que pretende que o espectador empatize com Daniel. A cena de abertura já trabalha neste sentido, com o protagonista correndo numa avenida completamente deserta enquanto fala em voz-over para a mulher que ele ama e que se encontra fora de seu alcance. Adiante, vemos Daniel tratando com carinho do pai e trocando farpas amorosas com a irmã enquanto se esforça para lidar com uma dupla perda: a namorada, que o abandonou, e sua identidade fortemente conectada ao trabalho da polícia – e agora à deriva. Seu único alento é o flerte com Sara, uma namorada virtual com a qual ele troca afetuosas mensagens plenas de desejo. Quando Sara corta toda a comunicação com Daniel, ele reage num rompante de romantismo (ou perseguição romantizada?), percorrendo centenas de quilômetros da sua Curitiba até Sobradinho, município baiano em que Sara vive.
O filme de Muritiba é bastante competente do ponto de vista narrativo, articulando uma direção de atores precisa (no papel do protagonista, Antonio Saboia revela grande estofo dramático e, na galeria de tipos que compõem o filme, Thomás Aquino se destaca com um trabalho de corpo muito sensível), uma fotografia com relances de brilhantismo (assinada por Luis Armando Arteaga) e a montagem afiada de Patricia Saramago (particularmente bem pensada nas sequências de estrada, em que o deslocamento físico do protagonista é também uma jornada interna que pressupõe um potencial transformador que ele mesmo ignora). Apesar desses bons elementos de linguagem, a narrativa se perde na forma pouco conscienciosa através da qual explora os corpos na tela, em particular Sara e o universo ao seu redor.
[A partir deste ponto, temos spoilers]
Antes mesmo que Daniel encontre Sara, é revelado ao espectador que ela não é uma mulher cisgênero, primeiramente através da voz da personagem e, posteriormente, por meio de sua imagem (ainda que o diretor opte por borrar inicialmente o rosto de Sara em um plano do celular de Daniel, a fim de manter o mistério, numa escolha que causa estranheza). A partir deste ponto, para além da óbvia questão de verossimilhança (o espectador, com seu reduzido contato com Sara, sabe imediatamente que se trata de uma pessoa trans, mas Daniel, a despeito de suas prolongadas interações com a moça, ignora o fato), o que se constrói é uma tensão centrada não na vida de Sara e em seu romance com Daniel, mas na expectativa pela reação do protagonista quando vier a ser confrontado com esse fato, numa premissa anacrônica, em que a existência trans é vista como uma ferramenta de suspense narrativo que não impede a manutenção do evidente protagonismo de Daniel, o homem branco cisgênero. Tal centralidade não é abandonada nem mesmo quando o filme se propõe, na sua segunda metade, a seguir Robson/Sara: não apenas o ator Pedro Fasanaro tem evidentemente menos tempo de tela, como as dores de sua(s) personagem(ns) são vistas a certa distância, sob as lentes de uma espécie de investigação antropológica que não chega nem mesmo a debater minimamente a identidade de gênero de Robson/Sara (não podemos afirmar que se trata de uma mulher trans ou de uma outra configuração de gênero, como a transexualidade não binária). A jornada de Sara com sua identidade e suas descobertas é nublada pelos desejos e sentimentos de Daniel porque a narrativa força a aproximação com a perspectiva do homem branco torturado pelos seus desejos sexuais e escolhas pregressas de vida.
Numa roupagem semelhante à de Ferrugem, a trama pretensamente se divide entre Daniel e Sara, mas é do início ao fim a história dele, com a jornada de Sara sendo apenas um apêndice incorporado de forma pouco orgânica (à exceção de um ou duas cenas que mostram a amizade entre Robson/Sara e o personagem de Aquino, acertadas, embora breves). As atitudes potencialmente abusivas de Daniel (o fato de que ele espalha cartazes de Sara pela cidade e, assim, expõe Robson, que termina por ter que se mudar, assim como as razões de seu “surto” passado ou o destino de sua vítima, entre a vida e a morte) são justificadas de maneira canhestra numa narrativa que se preocupa em humanizá-lo, mas não expõe os desejos e medos de Sara com o mesmo carinho. A sensação de que a trilha de Sara é um apêndice é sublinhada pelo fato de que o espectador só conhece Sara quando Daniel a encontra e, portanto, em relação com a jornada dele. Um exemplo são as razões que levaram Sara a cortar o contato com Daniel (ela havia visto uma matéria que expunha a violência do então policial), rapidamente descartadas tanto por Daniel quanto pela narrativa.
Inserido no país com o maior número de assassinatos de pessoas transexuais, vários desses casos no contexto de supostos surtos de violência de homens heterossexuais que se envolveram sexualmente com mulheres trans, o fato de que Deserto particular continua a romantizar a relação entre Robson/Sara e Daniel após a reação violenta (ainda que não física) do protagonista à descoberta da identidade de gênero de Sara faz com que o filme resvale na transfobia. A partir daí, Robson continua aceitando as migalhas que Daniel lhe direciona, numa romantização progressivamente mais intensa de uma relação abusiva (tom mantido no desfecho). Além disso, há ao menos uma cena de fetichização evidente da transexualidade, em que Robson veste um vestido que Daniel havia lhe presenteado (e que agora lhe exigia de volta) apenas para (assim parece) incitar seu desejo (e a atitude funciona, pois logo depois temos Daniel transando vigorosamente com uma mulher cis com o vestido ao lado, jogado na cama). De forma geral, todos esses elementos constroem o panorama de um filme em que a existência trans é instrumentalizada, utilizada para criar suspense e tensão na jornada de um homem branco, este menino grande e perdido que (coitado!) precisa aprender a lidar com seus desejos.