Críticas


FESTIVAL DO RIO 2007: TEMPORADA DE SECA

De: MAHAMAT-SALEH HAROUN
Com: ALI BACHA BARKAI, YOUSSOUF DJAORO, AZIZA HISSEINE, DJIBRIL IBRAHIM.
26.09.2007
Por Luiz Fernando Gallego
ERÍNIAS DE UM PAI

O argumento de Temporada de Seca é bem interessante. Um homem idoso e cego, com autoridade patriarcal, em uma pequena comunidade do interior do Chade, dá a seu neto uma “missão”: matar o homem que matou seu filho, já que o governo concedeu anistia para crimes de guerra. O jovem Atim, chamado de “o órfão”, nem conheceu seu pai: afinal foram 40 anos de guerra civil.



Na capital, Atim consegue encontrar o assassino Nassara, um homem que para se fazer escutar precisa de um amplificador para cordas vocais lesadas junto ao pescoço. Embora não seja nada jovem, Nassara está casado como uma moça bem mais nova que se encontra grávida. E apesar de ser rude e grosseiro, em vias de ser pai, também desenvolve uma inclinação paternal para com Atim que conseguiu ser ajudante na pequena padaria do outro - mesmo se mostrando hostil e belicoso. Mas Atim começa a postergar a conclusão de sua vingança.



Há muitos pais em cena, até mesmo duplicados: o cego que perdeu seu filho e ordena vingança tal como o deus Apolo exigiu a mesma coisa de Orestes pela morte de seu pai, Agamenon; Nassara, prestes a ser pai biológico e querendo ser pai adotivo de Atim; o pai morto - que é mais do que um fantasma ausente a ser vingado: transformado em “missão” abstrata, idéia, ideal, meta a ser perseguida.



Quando Atim estabelece uma relação próxima com Aicha, a jovem esposa grávida de Nassara, temos uma franca configuração triangular edípica. Atim quer matar o homem que está querendo ocupar o lugar de seu pai e que é seu adversário; concomitantemente, desenvolve familiaridade-intimidade com a mulher do outro, em vias de se tornar mãe. Caso adotado por Nassara, ela será sua madrasta – um delicado papel de substituta para o lugar de “mãe” (não se fala da mãe de Atim).



Como matar o homem que quer ser seu pai? Como desobedecer o avô de postura hierática? Na lenda grega, Orestes chega a ter que matar a própria mãe, Clitemnestra, porque ela participara da morte do esposo. Se não o fizesse, as deusas mais primitivas que cobravam vingança, as Erínias nascidas do sangue de um pai assassinado, perseguiriam Orestes - que também estaria desobedecendo a Apolo se não matasse sua mãe. E tão logo o faz, as Erínias nascidas do sangue dela o perseguem com remorsos intoleráveis.



Na magistral trilogia de Ésquilo, a solução será dada pela substituição da vingança pela Justiça, criando-se um tribunal por inspiração de outra deusa, Palas Atena (Minerva para os romanos). O resultado da votação entre os 12 membros dá empate quanto a punir o matricídio de Orestes e faz com que surja o “voto de Minerva” - no caso, a favor de que ele não seja mais perseguido pelas Erínias. Estas protestam, dizendo que, sem medo do castigo que elas infligem, os homens se trucidarão uns aos outros. Atena faz a proposta de não perseguirem os que cometeram crimes, mas possam tentar advertir os que estão inclinados a cometê-los: de Erínias perseguidoras, elas se transformariam em Eumênides (tolerantes). A psicanálise de Melanie Klein entendeu a sabedoria do mito como uma forma de falar da transformação da culpa persecutória – apenas por temor de ser descoberto e punido - em culpa reparadora - por consideração e identificação com quem foi prejudicado, com chances de elaboração das faltas e do remorso.



A sabedoria política do desfecho da “Orestéia” também é evidente: além da criação do tribunal e da justiça, ou seja, da Lei em lugar da vendetta, temos uma proposta de processo civilizatório que redunda exatamente na possibilidade do perdão pela anistia – o que não obrigatoriamente está espontaneamente nos corações humanos, mas sim no projeto educativo para a vida em comum civilizada.



O avô de Atim (cego como um Édipo após ter consciência de suas falhas trágicas?) não aceita a anistia que perdoaria o assassino de seu filho e transmite o ódio transgeracional ao neto. Um exemplo de vinganças sem fim pode ser lembrado em Abril Despedaçado.



O filme de Mahamat-Saleh Haroun desenvolve sua proposta de forma bem direta e despojada, quase como uma fábula oriental (ou africana, no caso). Esta forma tem sido apreciada em festivais (este filme recebeu o prêmio especial do Júri em Veneza, 2006), seja pelo “despojamento” que se quis assim (leia-se: como uma forma narrativa na verdade sofisticada de “des-dramatização”) ou mesmo como resultado de uma visão naïf, que é o que Temporada de Seca chega a aparentar. Há lances de roteiro que soam estranhos e mal definidos na relação de Nassara com Atim, podendo ser pensado que Nassara quereria mesmo ser “justiçado” ao manter o joverm em sua casa – hipótese que não se sustenta pelas demais atitudes gerais do personagem. Não dá para deixar de pensar que a elaboração do filme foi simplista ou até mesmo mal resolvida. Esta forma de apresentar enredos como "retratos em um por um" da realidade, sem maior dimensionamento ficcional (que transmita uma realidade ainda mais real do que o mero realismo/naturalismo) é – infelizmente - empobrecedor.



O despojamento geral (assim como digressões desnecessariamente longas na chegada de Atim à capital) não facilita a aproximação de platéias mais amplas, e filmes como este acabam relegados a prêmios em festivais e à admiração de parte da crítica. O que é uma pena, já que o tema se mostra forte, sempre atual, eterno. O que justifica tentar conhecer o filme com seu belo desfecho.



# TEMPORADA DE SECA (DARATT)

Chade, França, Bélgica, Áustria, 2006

Direção e Roteiro: MAHAMAT-SALEH HAROUN

Elenco: ALI BACHA BARKAI, YOUSSOUF DJAORO, AZIZA HISSEINE, DJIBRIL IBRAHIM.

Duração: 95 minutos

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