O mais recente filme de Asghar Farhadi, Um Herói (Grand Prix no Festival de Cannes 2021) talvez seja sua realização mais bem resolvida desde o premiadíssimo A Separação, de dez anos atrás. Mesmo que haja uma questão que foi levantada há tempos por alguns críticos de Farhadi: seus roteiros frequentemente omitem alguma coisa importante que só vai surgir numa revelação posterior para surpreender e dar uma reviravolta na história. Confesso que em A Separação isso não me incomodou, já que o que era omitido correspondia ao que o casal em litígio também não sabia, relativo a uma ação ou uma falha da cuidadora de um idoso. Em seus filmes seguintes tive que concordar que esse quase cacoete de roteiro se repetia e me decepcionei bastante com O Passado e O Apartamento que, apesar dos que questionam essa dramaturgia, colecionaram prêmios e elogios dos entusiastas do diretor. Curiosamente quase ninguém (nem mesmo seus admiradores habituais) curtiu Todos já sabem, de 2018, em que a já repetitiva omissão de elementos importantes da história não era tão fundamental para admirarmos outras qualidades da situação ali exposta.
Não é que no novo filme não haja o segredo de um fato anterior ao início da ação; e, afinal, não é raro que as histórias de roteiros romanescos - tal como os que Farhadi escreve - possam ter algo de um passado mais ou menos oculto cujas consequências tardias irão aparecer bem mais adiante. Mas Um Herói é tão inteligente e hábil na exposição de contradições na sociedade iraniana, sem proselitismo nem discurso didático, que o reiterado “recurso” questionável de dramaturgia acaba por importar muito pouco em relação às muitas qualidades do filme como um todo.
É bastante possível que o público associe seu enredo a alguma coisa do clássico neorrealista de Vittorio De Sica, Ladrões de Bicicletas, ainda que haja outras muitas particularidades que lhe emprestam originalidade própria. O ‘herói” (título ambíguo?) é visto, algumas vezes, com o filho ao seu lado, menino que testemunha sucessivas confusões e frustrações pelas quais o pai vai passar. Tudo começa com a premissa de um homem na prisão por ter uma dívida – Mas como assim? O Estado iraniano prende uma pessoa porque esta deve dinheiro a outra? Parece que sim. E para o espectador se identificar de cara com este homem preso, ficamos sabendo que ele tinha como profissão a de desenhista e calígrafo (das letras árabes tão belamente desenhadas segundo nosso olhar [preconceituoso?] ocidental que só vê ali lindos arabescos). Mas, também no Irã, a tecnologia teria transformado calígrafos artesãos em profissionais dispensáveis, e Rahim, o personagem central, acabou por contrair uma dívida elevada que não conseguiu pagar ao longo de três anos.
Seu credor, um ex-sócio, fez a denúncia que o colocou na cadeia, embora quando o filme comece Rahim esteja muito leve (e livre e solto, numa licença de dois dias), certo de que vai conseguir pagar metade da dívida e negociar o pagamento restante em prestações, assumindo qualquer emprego que lhe dê algum dinheiro – pois, estando preso, não tem como ganhar nem um tostão de modo honesto. Algo meio kafkiana essa prisão que impede de reparar a falta cometida.
E é justamente o conceito de honestidade no imaginário popular que coloca Rahim na posição de “herói”: dezessete moedas de ouro encontradas em uma bolsa feminina (cuja alça se rompeu e a fez ficar caída no chão em um ponto de ônibus) havia sido recolhida pela namorada de Rahim, podendo a venda do ouro ser fundamental para um plano de saldar, ao menos, metade da dívida! Mas... seja por qual motivo tenha sido, Rahim, em algum momento, resolve procurar quem seria a dona da bolsa com as moedas - e é esta atitude que vai transformá-lo numa figura "heroica" midiática - com todos os altos e baixos que a fama pode trazer. Até aqui o filme mal começou e deixo de apresentar o muito do que o roteiro ainda vai desenvolver de modo bastante hábil, seja para a trama romanesca, seja para o que penso que interessa mais: exibir contradições daquela sociedade.
Sem conhecer os hábitos iranianos, o espectador ocidental, além da surpresa de saber que uma pessoa pode ser presa por ter dívidas com outra [e parece que só será solta se o credor retirar a queixa; provavelmente se a dívida for paga – mas como? O sujeito está preso sem poder trabalhar!] também vamos ver que licenças, mais ou menos frequentes, podem ser usufruídas por pessoas que estão nesta prisão que também é mostrada como bastante acolhedora (sem que não saibamos se isto corresponde à realidade local, ou se o diretor não pode ser mais explícito a respeito). Ao mesmo tempo, há menção a presos condenados à morte e a um prisioneiro que se matou depois de 15 anos preso (e por que estava preso há 15 anos? Terá sido por dívida kafkiana, já que é impossível ganhar dinheiro honestamente na condição de presidiário?)
Os tristemente famosos e já apelidados de “tribunais da internet” são um ponto de contemporaneidade/modernidade que se soma a outros dados extremamente retrógrados que o filme aponta nesta mesma sociedade plugada nos celulares e redes sociais como em quase todo o mundo atual. Por exemplo: o credor responsável pela denúncia tem seu ponto de vista exposto claramente como contrapeso à simpatia que Rahim desperta; afinal, ele teve que pagar a parte dele - e a de Rahim - a um agiota com quem haviam conseguido dinheiro para o negócio que logo naufragou, tendo usado o dinheiro economizado para o dote de sua filha quando esta fosse casar. – De novo: como assim? Dote? A sociedade iraniana em algum nível mantém, em 2021, o conceito/preconceito da mulher como um “peso” financeiro a ponto de um pai ter que pagar ao futuro marido uma quantia mais ou menos significativa para que a filha se case?!
Se podem nos surpreender, nada de tais 'detalhes' que vão surgindo ao longo do filme são enfatizados: diversos aspectos serão expostos com a maior naturalidade e “normalidade”. E surgirão dezenas de contradições e muitas questões que poderiam problematizar o “heroísmo” de um devedor que abriu mão de usar em benefício próprio algo de valor encontrado por acaso (e que lhe seria muito útil) preferindo procurar a verdadeira dona das dezessete moedas de ouro. Também não tenho a menor ideia como uma tecelã pôde juntar moedas – e de ouro – por seu trabalho, às escondidas do marido, tal como vai surgir no relato da pretensa dona da bolsa encontrada. Parto do princípio que Farhadi fala de coisas corriqueiras da sociedade iraniana - ou seu filme seria totalmente rejeitado pelo público de lá - caso os elementos do enredo fossem mentirosos e irreais.
Então: se o que vemos acontecer na tela for mesmo correspondente à realidade iraniana, a denúncia sobre tal sociedade é feita de modo cortante, mas "como quem não quer nada" com a aparência de 'apenas' querer contar uma história enroladíssima - cujas entrelinhas estão suficientemente evidentes para, no mínimo, nos surpreender. Pequenas frases emitidas pelos personagens centrais ou secundários merecem a máxima atenção da plateia no sentido de nos deixar em estado de perplexidade: que mundo é este? Bem, parece ser o mesmo mundo em que, no justamente celebrado A Separação, uma cuidadora liga para uma espécie de 'disque-Alcorão' visando saber se uma mulher, nesta função, pode despir totalmente um idoso com Alzheimer que se sujou para poder lavá-lo adequadamente...
Nossa atenção é mantida durante os 127 minutos de duração do filme atual como acontecia no famoso anterior, não só pela habilidade do roteiro envolvente, mas também pelas imagens e falas transparentes (mesmo que o roteiro oculte um elemento que só será conhecido perto do final) e pelos atores mais do que perfeitos na ambiguidade das atitudes e pronunciamentos coloquiais de seus personagens e suas circunstâncias. Neste aspecto, o quase permanente sorrisinho no rosto do ator Amir Jadidi (Rahim) chega a ser intrigante: um ingênuo de coração? Um dissimulado? Por outro lado, o rosto contraído da filha do credor (a que perdeu o dote, provavelmente) nos deixa sugestões jamais confirmadas sobre suas ações fora de cena: terá sido ela quem quis colocar areia no sucesso midiático de Rahim? Ou foi seu mal humorado e ressentido pai? Ou foi qualquer hater das redes sociais que levantou pontos obscuros da história de heroísmo/honestidade apresentada inicialmente? Lembrando que o espectador testemunhou o aparecimento da provável dona do dinheiro. Como agora pretendem dizer que ela nunca teria existido? A tal da “Verdade” (com V maiúsculo) chega a carecer de um “teatro” fake para conseguir prevalecer? Outra armadilha que o enredo vai colocar, entre tantos outros paradoxos que o filme deixa para o público.
Enfim, mais do que ser apenas uma nova versão de Ladrões de Bicicletas, Um Herói nos parece uma obra ainda mais significativa para nossos tempos tão conturbados sobre sociedades e culturas nas quais o arcaico e o contemporâneo se misturam sem constituírem uma síntese de melhor convivência entre as pessoas - e quem sabe isso não passa mesmo de mais uma utopia?