Críticas


UNDINE

De: CHRISTIAN PETZOLD
Com: PAULA BEER, FRANZ ROGOWSKI, JACOB MATSCHENZ, MARYAN ZAREE
23.12.2021
Por Luiz Fernando Gallego
Atualização de um mito romântico-fantástico ou reflexão sobre o que permanece do passado?

Não deixa de ser surpreendente que, logo em seguida à sua trilogia sobre "amor em tempos opressivos" - que foi como o cineasta Christian Petzold se referiu a seus filmes Barbara, Fênix e Em Trânsito, ele aborde uma lenda sobre espíritos da água de características femininas, mas que não são humanas, não possuam uma ‘alma’, e que, a não ser que sejam amadas por um humano, não poderão viver entre nós. Entretanto, se o homem deixar de amá-las, elas o destruirão.

Em Undine, a primeira imagem que bate na tela mostra o rosto fechado da atriz Paula Beer dizendo a um homem que se ele a deixá-la, ela terá que matá-lo, coisa na qual ele parece não acreditar nem um pouco. Como ela tem que trabalhar, diz que vai voltar àquele café em meia hora e que ele deve esperá-la. No trabalho, apresenta-se ao público como ‘Undine Wibeau’, historiadora que vai explicar maquetes de Berlim em que são mostradas mudanças após a reunião da parte dita 'oriental' ao restante da cidade após a queda do muro. Como, em seguida, não encontra o homem com quem havia falado antes, parece ficar ainda mais sombria. Entretanto, Christoph, que assistira sua apresentação, a seguira e mostra-se interessado em estabelecer um relacionamento. Vida que segue, ela vai se mostrar feliz ao lado dele, mergulhador profissional que trabalha em roupas de escafandrista consertando tubulações ou outras estruturas subaquáticas da cidade.

Quem atentar para esta camada do enredo verá um filme belamente fotografado por Hans Fromm (colaborador habitual dos filmes do diretor), muito bem interpretado pela mesma dupla do anterior Em Trânsito, Paula e Franz Rogowski, vivendo uma história de amor com os traços fantásticos de um romantismo já antigo. E talvez considere uma obra “menor” na filmografia de Petzold.

Por outro lado, nada talvez seja tão simples em seus filmes: ele já fez uma espécie de versão livre do enredo de “The Postman always rings twice”, de James M.Cain, levado às telas mais fielmente em três filmes anteriores, em Jerichow (2008); parafraseou um antigo filme de terror, Carnival of Souls, em Yella (2007) para falar de mudanças - ou não - de seu país; assim como mesclou o passado da invasão nazista na França ao presente em que outros imigrantes atuais - e não só os judeus e/ou comunistas de antes - tentam escapar para sobreviver na obra-prima Em Trânsito.

O trabalho da personagem Undine não nos parece irrelevante para esmiuçarmos outras possíveis camadas deste filme: Berlim é mostrada em maquetes após a queda do muro, mas, em outro momento, em projetos de quando a então União Soviética fez planejamentos urbanos de acordo com a ideologia reinante, ainda que nem sempre levados a cabo. Outras reformas ainda mais anteriores também fazem parte de uma terceira apresentação da personagem. Outras “camadas” da história da cidade também são referidas quando Christoph trabalha reparando antigas tubulações em rios ou lagos que cortam a região.

Ou seja, tal como em Em Trãnsito, um passado histórico, aqui acrescido de outro passado, mítico (lendas românticas/assustadoras), mesclam-se com o presente cotidiano em um enredo que terá alguns momentos francamente fantásticos, apresentados com a maior naturalidade, tal como em duas situações-limite, seja lá que acontece com cada um dos membros do casal Undine-Christoph em diferentes momentos.

Petzold pode estar falando mais uma vez sobre a permanência do passado ou da sua relativa imutabilidade, temas recorrentes em outros de seus filmes. Se as duas vertentes, a meramente romântica e a reflexiva, conseguiram uma boa fusão, talvez seja uma questão de diferente resolução para cada espectador. Seja visto como tendo significados menos óbvios, seja visto como uma história de amor impossível que atualiza um antigo mito, talvez não deixe de ser mesmo uma obra menor do cineasta, ainda que tão bem dirigida, filmada e interpretada.


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