Para recuperar o prestígio e a audiência do Oscar, sobretudo entre as novas gerações, a Academia de Hollywood não tem medido esforços para transmitir a seus membros votantes a ideia de que contemplar a diversidade talvez seja até mais importante do que valorizar a qualidade dos indicados. Assim acaba-se abrindo espaço para que, lado a lado entre os concorrentes a Melhor Filme, estejam produções tão díspares quanto “No ritmo do coração”, de Sian Heder, e “Licorice Pizza”, de Paul Thomas Anderson. O primeiro é um simpático e bem intencionado manifesto inclusivo (em prol dos surdos-mudos), mas medíocre como cinema, enquanto o segundo é uma obra de arte.
Mas afinal, quem ainda se importa com a arte? A crítica deveria (o que não significa, claro, ignorar a importância do cinema para promover uma sociedade inclusiva e menos desigual). Deve-se valorizar o fato de que ainda existam diretores que conseguem transitar em Hollywood exercendo seu talento autoral livres de imposições narrativas ou temáticas. É o caso de Paul Thomas Anderson, responsável por algumas das maiores obras-primas deste século, como “Sangue Negro” e “Trama Fantasma”.
Seu novo filme, “Licorice Pizza”, retoma uma atmosfera nostálgica em relação à região de Los Angeles onde cresceu, e que esteve presente em “Boogie Nights” (1997). Ambos se passam em períodos diferentes dos anos 70, tendo como pano de fundo a indústria do entretenimento. De certa forma, é como se o novo filme fosse uma espécie de “prequel” daquele sobre a ascensão e queda de um astro do cinema pornô. O personagem de Mark Wahlberg perseguia o sonho americano se valendo de um pênis avantajado. Em “Licorice Pizza”, Gary (Cooper Hoffman, filho do falecido Phillip Seymour Hoffman) tem apenas 15 anos e um precoce tino empreendedor. Quando percebe que o trabalho como ator mirim não o levará muito longe, vislumbra a possibilidade de enriquecer vendendo colchões de água ou abrindo uma loja de fliperamas.
Futuramente ele pode ter o mesmo destino de um ator pornô decadente, mas o que interessa a P.T. Anderson – e o que torna a narrativa do filme tão solar e contagiante – é filtrar a realidade pelo olhar adolescente despudoradamente desejante, que tem como alvo principal o amor de Alana (a cantora Alana Haim). Ela já é maior de idade e ainda vive sob a sombra dos pais e irmãs mais velhas. A amizade com Gary funciona como uma espécie de portal para um mundo com mais emoções – o que envolve descer uma ladeira sinuosa de marcha à ré dirigindo um caminhão com motor desligado.
Anderson povoa a ficção de “Licorice Pizza” (o nome se refere a uma antiga loja de discos) com referências ao mundo real de L.A., o que inclui pontas de Sean Penn, Bradley Cooper e outros dando uma ideia do que era a loucura da Nova Hollywood no início dos anos 70, um glamour por vezes melancólico. Ele não deixa de lado a hipocrisia política, a violência policial e o machismo da época, mas isso se manifesta nas entrelinhas, quase como pequenas vinhetas, porque as personagens não tinham uma consciência muito clara disso. Alana, por exemplo, começa o filme trabalhando como assistente do fotógrafo do álbum anual da escola de Gary. Seu chefe passa a mão em sua bunda com a maior naturalidade do mundo. Mais tarde, durante uma exposição comercial, Gary é preso pela polícia de maneira agressiva, acusado de assassinato. Desfeito o equívoco, retiram suas algemas e o liberam sem um pedido de desculpas sequer.
Os episódios vão se sucedendo com personagens que entram e saem de cena sem muita explicação, mas isso pouco importa para o diretor e para quem embarca em sua viagem nostálgica conduzida por uma incrível dupla de atores estreantes. A sensação que fica é a de que o mundo real e o do cinema “encaretaram” de tal forma que a função libertadora da arte, refletida em filmes assim, hoje soa como algo anacrônico e incômodo para muita gente.