(Resenha escrita durante o Festival do Rio 2007, revista para o lançamento comercial do filme em 2009)
Em 1984, na França, o médico cinquentão Adrien (Michel Blanc) gosta de rapaz recém-chegado a Paris do interior, Manu (Johan Libéreau). Manu, por sua vez, sente atração por um policial de ascendência argelina, Mehdi (Sami Bouajila, prêmio César de melhor coadjuvante 2008) que também se interessa por Manu e tem um casamento aberto com Sarah (Emmanuelle Béart), escritora de livros infantis que acabou de ter um filho com o marido. Uma aspirante a cantora lírica, Julie (Julie Depardieu), é irmã de Manu; ela já havia se mudado antes dele para Paris e ambos não contam com muitos recursos financeiros.
Manu vai morar com Julie em um quarto de hotel barato em rua de prostituição. Ela é afável, gosta de seu irmão fraternalmente, mas parece só se interessar por seu canto, sendo a ponta solta da "quadrilha", aquela que “não gosta de ninguém”. Esta personagem - que fica um pouco à margem da ciranda erótica de As Testemunhas, o mais recente filme de André Techiné - consegue papel igualmente menor em uma encenação da ópera de Mozart As Bodas de Fígaro: ´Barbarina´ - que canta apenas uma breve e bela ária na qual se lamenta de ter perdido um alfinete que serviria como recado para um dos encontros amorosos da ciranda também existente no enredo da ópera (extraído da peça homônima de Beuamarchais onde ´Rosina´ é casada com o ´Conde de Almaviva´ que está assediando ´Suzana´ que vai casar com ´Fígaro´ que é assediado por ´Marcellina´, etc).
Assim como havia introduzido uma cena de outra obra de Mozart (uma passagem de A Flauta Mágica) em Os Ladrões (1996), o diretor André Techiné insere o solo de Barbarina neste As Testemunhas. A canção traz um lamento: “Perdi... Pobre de mim ... Quem sabe onde estará...?”. Téchiné também já havia mostrado, em Alice e Martin (1998), uma moça dedicada à música dividindo um apartamento com um grande amigo com quem não namora, sendo ele homossexual. Estes elementos, reciclados em nova configuração parecem dizer que “qualquer maneira de amor vale a pena”.
Mas, tragicamente, na época em que o filme se passa, surge uma doença desconhecida de transmissão sexual; e os personagens, de participantes de uma ciranda amorosa de belos dias de verão, passarão a testemunhas da chegada devastadora da AIDS.
Filmado sem deslizes melodramáticos, As Testemunhas parece trazer uma certa urgência de contar sua história, ainda que situada há 25 anos, urgência antecipada pelo ritmo acelerado da ária barroca usada nos créditos iniciais, antagônica ao andante lento da canção de Barbarina que se vai escutar e ver encenada só perto do final do filme.
Téchiné procura atenuar o drama dos personagens através de certo distanciamento e uso de narrativa pontual em off na voz de ‘Sarah’, preenchendo as elipses dos acontecimentos com breves informações. O tom do filme é mesmo algo informativo, sem chegar a didatismo exagerado, mas talvez pretenda mostrar para gerações mais jovens como foi o fim do sonho de uma época que se pretendia tão liberada sexualmente como sem culpas. Não derrapa em proselitismo exacerbado, mas aponta para preconceitos que ainda possam existir em relação a escolhas sexuais que ficam marcadas por intercorrências como as de doenças sexualmente transmissíveis (ainda que não só pelo sexo: transfusões de sangue infectaram hemofílicos e muitas outras pessoas que precisaram de tal recurso terapêutico).
A correção de todos os atores dribla os estereótipos com que poderiam ter sido concebidos: um gay mais velho e com mais dificuldade de ser escolhido dentro do culto narcisista de encontros para sexo sem compromisso; o gay mais jovem, charmoso, de bom humor e atraente para muitos; o heterossexual que se descobre excitado por outro homem; a moça que só parece estar ligada em sua profissão artística; a outra mulher com dificuldades com a maternagem em um casamento aberto: um casal que não quer se separar, independentemente de cada um manter relações sexuais com outras pessoas - de qualquer sexo.
Todos serão atingidos, direta ou indiretamente, adoecendo ou não. Mas no livro que ‘Sarah’ vai escrever sobre ela mesma e seus amigos, tal como reza a letra da canção brasileira, eles “estarão sempre juntos” e – apesar de tudo – “qualquer maneira de amor vale amar”. Sem repetir a excelência do subestimado Alice e Martin ou de Os Ladrões, este filme correto é o mais bem sucedido de Techiné nos últimos anos.
# AS TESTEMUNHAS (LES TÉMOINS)
França, 2007
Direção: ANDRÉ TECHINÉ
Roteiro: ANDRÉ TÉCHINÉ, LAURENT GUYOT, VIVIANE ZINGG
Fotografia: JULIEN HIRSCH
Edição: MARTINE GIORDANO
Direção de Arte:
Música Original: PHILIPPE SARDE
Elenco: MICHEL BLANC, EMMANUELLE BÉART, SAMI BOUAJILA, JOHAN LIBÉREAU, JULIE DEPARDIEU.
Duração: 115 minutos