Na última década, principalmente estimulado pelo crescimento exponencial do mercado de streamings e a consequente demanda por um maior número de produções, houve um aumento significativo na quantidade de roteiros adaptados. Tal movimento vem rendendo resultados de sucesso de crítica como, por exemplo, A filha perdida, assinado por Elena Ferrante, e outros desastrosos como A mulher na janela, estrelado por Amy Adams e baseado na obra de A.J. Finn, lançado em 2021 pela Netflix (dentre outros).
Um lugar bem longe daqui (no original, Where the Crawdads Sing), livro escrito pela estadunidense Delia Owens, ganhou a atenção do público logo após seu lançamento, sendo inclusive incluído na lista de sugestões do famoso e cobiçado clube de leitura organizado por Reese Witherspoon, o Reese's Book Club. Posteriormente, a atriz adquiriu os direitos da obra, e a Hello Sunshine, produtora que ela fundou (e vendeu por uma quantia milionária), ficou responsável pela adaptação cinematográfica.
A trama não traz elementos narrativos inovadores: a história é focada em Kya Clark, uma jovem que vive com sua família em um terreno cercado por mangues, localizado próximo a uma pequena cidade na região sul dos Estados Unidos. Kya, assim como os demais membros da família Clark, são ignorados ou vistos com desprezo pelos habitantes da comunidade vizinha devido à sua situação financeira precária e ao seu modo de vida, vivendo praticamente isolados em sua casa. Como consequência do abusivo e violento comportamento do patriarca, a família vai se “dissolvendo” até o momento em que Kya, ainda menina, é deixada sozinha e responsável não apenas pelo local, mas também por sua sobrevivência. Com o passar dos anos e com a ajuda de Tate Walker, seu único amigo, a solitária jovem amadurece, tornando-se uma mulher cuja história foi alimentada por rumores e boatos fantasiosos. Sua presença passa a despertar a curiosidade de alguns moradores – especialmente homens – e, quando um deles é encontrado morto próximo à casa de Kya, ela imediatamente se torna suspeita do crime.
O filme, assim como o livro, caminha através de duas linhas temporais: uma no início dos anos 1950, começando com Kya ainda criança e a família Clark reunida, e outra, ao longo da década de 1960, abordando os acontecimentos que culminam no julgamento de Kya pelo assassinato de Chase Andrews. E é exatamente na atenção dada a essas duas fases da narrativa que está a maior diferença entre o livro e sua adaptação. A escritora Delia Owens descreve minuciosamente a infância de Kya, seu lugar no núcleo familiar, até o abandono, as dificuldades e os subterfúgios criados pela menina para sobreviver, suas impressões e sentimentos, guiando o leitor em todo o processo de amadurecimento e sofrimento da personagem – o que oferece camadas e complexidade para a trama. O foco está na jornada da personagem permeada pelo elemento policial, com a investigação do assassinato atuando secundariamente: ou seja, os fatos que ocorrem na vida de Kya e a formação de seu caráter são mais relevantes do que a descoberta e o julgamento do assassino de Chase.
No entanto, o roteiro assinado por Lucy Alibar direciona o foco do espectador para outras questões, como, por exemplo, os relacionamentos amorosos de Kya. A roteirista também provoca na audiência um suspense maior acerca do crime, destinando boa parte dos 125 minutos de exibição para o desenvolvimento do whodunit, o conhecido “quem matou?”. É possível que a escolha por romancear e reduzir o martírio e a solidão vividos pela personagem em tela seja uma tentativa de tornar a história mais “palatável” do que a bela, porém árdua, escrita de Owens.
A atriz inglesa Daisy Edgar-Jones consegue mostrar em sua interpretação as diferentes nuances de força e vulnerabilidade características de Kya – ainda que seu forte sotaque britânico destoe em algumas cenas, já que a trama se passa no sul dos Estados Unidos. Taylor John Smith e Harris Dickinson entregam bons trabalhos com Tate e Chase, homens de caráter completamente opostos, ligados a Kya. Não obstante, o destaque fica com David Strathairn ao interpretar Tom Milton, o advogado de defesa da jovem. O ator consegue transmitir seu inicial conflito interno: defender Kya ao mesmo tempo que não sabe quase nada sobre ela. A química entre ele e Edgar-Jones funciona de forma que os personagens mostram grande cumplicidade e até mesmo um vínculo quase paternal em determinado momento do filme.
A fotografia é belíssima e explora bem a paisagem natural da Louisiana, onde a produção foi filmada, e também sua imensidão, enaltecendo a solidão da personagem em tela. O filme é uma uma escolha acertada para o espectador que não tem conhecimento da obra literária e procura uma boa história de superação com uma dose de romance (importante ressaltar a presença de inúmeros gatilhos emocionais no decorrer da narrativa). Para os já familiarizados com a trama, algumas pontas soltas e a ausência de importantes diálogos e conclusões podem incomodar. É uma boa adaptação, mas a ela se aplica a máxima, nem sempre verdadeira, de que “o livro é melhor que o filme”.