O diretor japonês Hirokazu Koreeda se notabilizou como um dos melhores e mais premiados cronistas de histórias familiares do cinema contemporâneo, sobretudo lançando um olhar humanista sobre relações entre pais e filhos que retratam alguma disfuncionalidade. “Ninguém pode saber” (2004), “O que eu mais desejo” (2011), “Pais e Filhos” (2013), “Depois da tempestade” (2016) e “Assunto de Família” (2018), que venceu a Palma de Ouro em Cannes, são alguns exemplos aos quais se junta seu novo filme, “Broker”, exibido em Cannes esse ano e laureado com o prêmio de melhor ator para o sul-coreano Song Kang-ho, protagonista de “Parasita”.
Filmado na Coreia do Sul, com elenco coreano, “Broker” guarda um parentesco forte com “Assunto de Família” ao mostrar uma família reunida em torno de delinquências. Pequenos roubos, no caso do filme anterior, e tráfico de bebês, no novo filme. O termo “tráfico de bebês” parece indicar um drama pesado, mas a abordagem dada por Koreeda é mais leve que a do filme anterior. Para isso contribui muito a figura bonachona de Song Kang-ho. Ele interpreta Sang-hyeon, um vigarista que se associa a Dong-soo (Gang Dong-won), um funcionário de uma paróquia de Busan onde existe uma “baby box”. Essas polêmicas caixas, muito comuns em grandes cidades sul-coreanas, servem para que mães abandonem anonimamente os filhos recém-nascidos que não têm condições (ou não desejam) criar. As crianças são destinadas a lares de assistência social para futura adoção legal.
A atividade da dupla, que sequestra as crianças para vender depois de apagar as imagens das câmeras de segurança, vem sendo vigiada de perto por uma dupla feminina de detetives, que, à espera de um flagrante, permite que a jovem So-young (a cantora de K-Pop Lee Ji-eun) largue seu filho e passam a vigiar os envolvidos. Ao contrário da grande maioria das mães que tomam esse tipo de atitude, So-young se arrepende e retorna para recuperar o filho, mas acaba convencida a se associar aos criminosos para dividir o lucro da venda da criança.
Ao longo do filme prevalece um tom de humor que se estabelece já quando o primeiro casal de potenciais pais adotivos dispostos a comprar a criança reclama que o bebê não é tão bonito quanto na foto enviada pelos “corretores”. “Usou photoshop?”, reclama o homem, querendo reduzir o valor pela metade porque a aparência não atendeu sua expectativa. Uma ofensa para a mãe verdadeira, que deveria assistir a tudo de longe, anônima, mas intervém esbravejando e recusa a venda por eles terem insultado a criança.
O processo de desconstrução da imagem dos potenciais vilões passa pela revelação de seus próprios dramas familiares. Kang-Ho vive distante da filha, que mora em Seul. Dong-soo foi criado em um orfanato após ter sido abandonado da mesma maneira que So-young faria com o filho. Sua ligação com a atividade ilegal, portanto, traz também um elemento freudiano.
Sang-hyeon está o tempo todo tentando enfatizar para So-young que se não fosse ele e seu comparsa ela nunca mais veria o bebê, pois ela não tinha registrado a criança e quando voltasse poderia ser tarde. A trajetória deles de carro em busca do comprador em determinado momento passa a incluir um menino do orfanato que se escondeu na mala durante a visita de Dong-soo ao seu antigo lar. O menino, que sonha em se tornar jogador de futebol, é prontamente acolhido e os quatro, mais o bebê, passam a formar uma inusitada família que vive momentos felizes, como uma parada na lava-jato em que todos se divertem com um inesperado banho ao esquecerem a janela do carro aberta.
Ou seja, no fim das contas, prevalece a atmosfera de “feel good movie”, combinada com uma mensagem realista de otimismo e esperança em relação ao difícil papel da maternidade.
*Texto publicado originalmente n'O Globo.