Dos cinco sentidos, é possível que o olfato seja aquele que configura o maior desafio para a representação cinematográfica. Essa dificuldade intrínseca do meio torna a escolha de Léa Mysius, que usa o odor como elemento estruturador da narrativa, particularmente instigante. A trama de Les Cinq Diables (Os cinco demônios) transcorre a partir do ponto de vista de Vicky, uma garotinha de olfato privilegiado, capaz de identificar todos os matizes de um odor, e que tem por hábito recriar o cheiro daqueles que conhece juntando ingredientes em potes etiquetados. Vicky vive numa pacata cidade com a mãe, a francesa Joanne (Adèle Exarchopoulos, em ótima atuação), e o pai, o senegalês Jimmy (Moustapha Mbengue). Joanne trabalha como instrutora num centro de atividades aquáticas e, nas horas vagas, desafia os limites do seu corpo nadando nas águas gélidas de um lago local, sob o olhar vigilante da filha, que avisa à mãe quando ela precisa deixar a água para não se arriscar a uma crise de hipotermia. O equilíbrio da família já demonstra sua fragilidade com a construção paulatina de um clima que deixa antever algo oculto na dinâmica dos três. As intrusões do pai machista e bonachão de Joanne completam o cenário de potencial desagregação familiar. Quando a irmã de Jimmy, Julia (Swala Emati), retorna da prisão e se abriga na casa do irmão, sob os protestos da cunhada, sua presença disruptiva faz com que o que já não era sólido passe a desmoronar a olhos vistos. E esses olhos são os olhos de Vicky.
Vicky nota o incômodo que a presença da tia provoca. Paralelamente, os frascos que coleciona passam, quando abertos, a ser conduítes que transportam a menina para momentos-chave dos enredamentos passados da família. Usando como dispositivo narrativo para articular presente e passado justamente o odor, cuja capacidade de evocar memórias já rendeu discussões filosóficas e científicas, além de incontáveis incursões poéticas, o roteiro (escrito pela realizadora e pelo também diretor e fotógrafo Paul Guilhaume) alinhava de maneira sofisticada os entrecruzamentos que revelam os ecos do passado e os muitos mistérios que envolvem o crime de Julia, incluindo seu estado mental claramente instável. À medida que Vicky acessa as memórias encapsuladas através dos frascos em que guarda a essência daqueles com quem convive (ou, melhor dizendo, os guarda enquanto essências), sua ligação com a tia é dissecada em uma narrativa fantástica que prende a atenção do espectador, embalada por uma ótima trilha sonora, com destaque para a canção “Total Eclipse of the Heart”, de Bonnie Tyler, uma das muitas músicas dos anos 1980 que voltaram a circular em tempos de TikTok. Ligada a esses três elos biológicos, a trindade pai-mãe-tia (e não parece coincidência que todos os personagens tenham nomes começados com a letra jota), Vicky surge como o ponto de convergência de relações cuja complexidade ela é incapaz de compreender, dada sua tenra idade. Neste ponto, a relação entre cheiro e desejo também é muito bem explorada pelo filme.
Ao fim, dois elementos contrastantes, também eles canais de propagação de aromas, o fogo e a água, intensamente presentes ao longo da trama, precipitam um desfecho com o encontro de forças antagônicas (ou complementares) levando a um novo equilíbrio, estado em que a pacificação talvez não seja possível nem desejável.