A realidade virtual invade a tela do cinema. Não se trata de um filme em 360 graus, para o qual são necessários acessórios específicos; na verdade, mãos artificiais esculpem uma criatura desconhecida, em um misterioso plano de abertura que dura alguns minutos até revelar Julián (Nacho Sánchez) movendo-se com óculos e controles eletrônicos em meio à sua sala de estar. O silêncio de seu gesto quase coreografado se interrompe em dois momentos: de início, pelo som distante de um piano; depois, por gritos de socorro. Ambos emanam do apartamento ao lado, onde o pequeno Cristian (Álvaro Sanz Rodríguez) ateara fogo acidentalmente. Uma vez salvo pelo vizinho, o menino confessa sua paixão pelas plantas, seres tão sensíveis quanto sua própria ingenuidade: sonha, pois, em ser jardineiro. Quando este era criança, por sua vez, Julián queria ser um tigre – uma aspiração impossível, adverte Cristian, reiterando a abordagem dos limites entre o virtual e o real. Assim começa Mantícora (2022), novo filme de Carlos Vermut, cujo mitológico título remete a uma figura persa metade tigre, metade homem. O que há de humano no predador? Ou, antes, o que há de predador no humano? São questões árduas, mas das quais o cineasta espanhol não se esquiva. Tal coragem, recorrente em sua filmografia, já lhe havia rendido elogios de Pedro Almodóvar por ocasião do lançamento de A garota de fogo (La niña de fuego, 2014).
Caso tentemos, a partir da obra, responder às duas perguntas evocadas, podemos sugerir um par de reversões, sob o risco inevitável de simplificar em demasia o debate. De um ângulo, há a profissão do protagonista, um “modelador de criaturas” para videogames que, no seu dia a dia de trabalho, precisa lidar com o desafio de emprestar personalidades distintas e verossímeis aos seus “chefões”. “Eles têm muita vida anterior” ou mesmo “um olhar melancólico”, como constata sua amiga de aparência infantil – comentário que não é desimportante – Diana (Zoe Stein), embora seu criador desvie de tais pretensões: afinal, por não se considerar muito talentoso, prefere desenhar entidades imaginárias em vez de pessoas, cujos paralelos com a vida real deixariam mais evidentes eventuais falhas de sua modelagem. De outro ângulo, em reverso, a monstruosidade que transparece gradualmente no personagem resiste a qualquer tentativa de empatia por parte do espectador, restando a este tão somente o incômodo de assistir a uma narrativa centrada em um homem cujos demônios ele não mais consegue empurrar para as margens da ficção ou da transferência. Tal desconforto deriva, de fato, de uma acertada escolha da direção, avessa a psicologismos – sugere-se algo entre Julián e seu pai, mas logo se abandona essa hipótese, para o bem do filme. É como se Vermut explicitasse sua proposta na fala de Elias, namorado de Diana com quem o protagonista discute: “Quase sempre prefiro os jogos que têm violência gratuita do que os que tentam justificá-la com uma história. São mais honestos”. Igualmente honesto é o seu cinema, seja na recusa às explicações fáceis, seja nos vazios e nos silêncios, seja na distância respeitosa dos planos, seja enfim na coragem que outrora atraíra Almodóvar.