Alguns filmes são tão catárticos e emergem em momentos históricos tão precisos que comprometem o julgamento crítico. É preciso crer, no entanto, que a crítica não deve se furtar à investigação da catarse, ou concebê-la como um elemento vulgar e indesejável da arquitetura fílmica. De fato, produzir no espectador uma emoção intensa em consonância com um período histórico vivido, tanto mais se esse espectador deve cruzar as fronteiras de sua própria cultura em sua fruição, é algo impressionante e que demonstra inequivocamente a força do cinema. Assim, cabe dizer que Argentina, 1985 não prima pela sofisticação de seu roteiro (bastante convencional) ou de sua fotografia (que ganha ares de telefilme), mas prende absolutamente a atenção do espectador pelo que seriam longos 140 minutos (e, surpreendentemente, não o são) para contar em detalhes a história do Julgamento das Juntas Militares, julgamento civil de comandantes militares por crimes da sangrenta ditadura argentina, marco histórico da redemocratização do país.
O filme de Santiago Mitre escolhe centrar-se na figura emblemática de Julio César Strassera, procurador encarregado do espinhoso caso, e talvez pudesse ser acusado de retratar um herói quase sem defeitos (pai preocupado com os filhos, mas não repressor, marido carinhoso, amigo leal e amante de música clássica) se Ricardo Darín não lhe desse essa humanidade pulsante que ele instila aparentemente sem esforço em todos os seus personagens. De fato, Darín é a prova de que Nelson Rodrigues estava errado e nem toda unanimidade é burra. No papel do jovem promotor assistente, Luis Moreno Ocampo, Peter Lanzani ganha força cênica em suas interações com o protagonista, incluindo o momento em que Strassera entreouve uma ligação entre Ocampo e sua mãe, um dos diversos momentos em que o filme leva facilmente parte do público às lágrimas. Uma ótima escolha é o bom uso do humor, centrado nas quebras de expectativa das interações entre Strassera e sua esposa e no personagem de Carlos, também advogado e confidente do protagonista, interpretado com vigor por Claudio Da Passano. De fato, uma ótima cena entre os dois, quando tentam aventar nomes de colegas de profissão para se juntarem ao caso, consegue ser hilariante e um retrato político fiel da ascensão do fascismo na Argentina.
Há excessos, incluindo diversas das interações familiares de ambos os personagens centrais, que falham em lhes dar um pouco mais de tridimensionalidade em sua verve por aplaudi-los por sua muito impressionante coragem e seu compromisso com a ética e a justiça. As cenas de tribunal parecem comprometidas com a fidelidade aos acontecimentos reais, incluindo a longa leitura do texto final de acusação, que poderia acabar enfadonha, mas resulta emocionante por conta de um belo trabalho de montagem (costurando as reações do público, incluindo os réus e o corpo de juízes) e da interpretação de Darín, que parece comovido e nervoso, como se pudesse a qualquer momento errar as palavras ou se perder sem querer. Ao fim da leitura, imagens de arquivo, já presentes pontualmente ao longo do desenvolvimento, são belamente costuradas à narrativa e o filme tem um desfecho bastante comovente.
A Argentina lida muito melhor com a memória da ditadura do que o Brasil, isso está claro em sua história. Está também claríssimo em seu cinema desde o brilhante A história oficial, de Luis Puenzo, lançado justamente no mesmo ano de 1985, um ano crucial para a Argentina. Que a coragem dos nossos hermanos possa nos inspirar nestes tempos sombrios.