Texto revisto a partir do que foi escrito durante o Festival do Rio 2007
É na hora do amor que o ser humano se encontra mais vulnerável. Relatos históricos e míticos contam de mulheres (como Dalila) que seduziram homens poderosos para destruí-los, matá-los ou entregá-los aos inimigos. Desejo e Perigo, filme de Ang Lee premiado em Veneza 2007, é outra demonstração do enunciado sobre as armadilhas que podem ser colocadas no rastro da fascinação sexual. Desta vez, a teia é armada em Xangai e Hong Kong no período de quatro anos entre 1938 e 1942 durante as investidas de invasão japonesa à China, estando Xangai sob ocupação em boa parte da história.
Um grupo de jovens amadores encena peças patrióticas contra a invasão e resolve ir mais além da propaganda de idéias, planejando passar à prática com o objetivo de matar o Sr. Yee (Tony Leung, mais conhecido aqui dos filmes de Wong Kar Wai como 2046 e Amor à Flor da Pele, excelente como sempre). Ele é alto funcionário do governo colaboracionista com o Japão. Para tanto, uma das moças, Wong Jiazhi (Wei Tang, em seu primeiro papel), irá fingir ser a esposa de ‘Mak’, um (falso) homem de negócios - e como tal, infiltrar-se no círculo social do Sr. Yee. Assim, seus companheiros conseguiriam um acesso menos difícil ao protegido funcionário, um homem discreto e desconfiado, capaz de torturar os resistentes chineses à invasão japonesa ou/e enviá-los à morte sumária.
O Sr. Yee está sempre atento e é muito esperto: já teria desmascarado duas outras mulheres que tentaram espioná-lo, e com isto pôde obter informações sobre as atividades dos grupos aos quais elas pertenciam - antes de mandar matá-las. Mas desta vez, aos poucos, ele vai reduzindo os cuidados em relação à pretensa Sra. Mak, chegando a mandar fazer um anel para ela – não importando a pedra nem seu preço: apenas pelo prazer de ver nos dedos dela um anel escolhido por ele.
Antes disso ele já se revelara insaciável e sádico no sexo, ou seja, não apenas nas torturas (jamais vistas) que aplica em seus prisioneiros investigados. E a jovem, na pele da Sra. Mak, transforma-se em parceira sintonizada com os desejos dele. É uma atriz que simula por estar convicta do espírito militante de sua causa política? Ou a moça está se deixando seduzir pelas práticas pervertidas do homem que precisaria manter conquistado e “desarmado” para ser pego em armadilha e assassinado? E se ela transa com ele para que ele seja morto, pode-se perguntar: quem seria mais perverso?
O que se insinua nas entrelinhas do filme (e “entrelinhas” são mencionadas explicitamente em um dos primeiros diálogos sedutores que ela trava com ele) é a questão da representação, no sentido teatral do termo. Só que fora do palco. A tarefa à qual a aplicada atriz amadora se dedica ao criar uma personagem como a inventada Sra. Mak, coloca em cheque os limites da representação enquanto “jogo” que não é (nem deve ser) “a realidade”, mas apenas seu simulacro, uma recriação ficcional. O ator no palco está representando uma vida possível, mas não deve “viver” fora dos palcos aquela vida que encarna apenas transitoriamente.
A jovem Wong, como amadora que é, borra os limites da separação palco-vida: como “representar” uma relação sexual? Fingir um gozo feminino é possível (e o cinema já brincou com isto em uma hilária cena de Meg Ryan no filme Harry e Sally). Mas o ato sexual da falsa Sra. Mak com o autêntico Sr. Yee teria que ser um verdadeiro ato sexual. Para não ser flagrada como virgem inexperiente, os rapazes, seus companheiros de farsa, tiveram que anteriormente “ensaiar” a moça em relações sexuais reais. Talvez por estar fascinada pelo líder do grupo, ela ultrapassa as fronteiras da representação, da encenação e da simulação. Mas o fato é que tanto o Sr.Yee vai se deixar envolver como nunca, ao encontrar a consonância erótica de ‘Mak Tai Tai’, como também ela corre o risco de se deixar seduzir pelo que deveria ser apenas objeto de sedução para uma armadilha mortal.
Em algumas cenas, vemos a jovem Wong indo ao cinema. Um dos cartazes de filmes que se vê ostensivamente em uma das salas de exibição é o de Suspeita - que Hitchcock lançou em 1941, contando de uma jovem rica que desconfia que o marido (pobre) pretenda matá-la. Mas o clima do melodrama de espionagem de Desejo e Perigo é bem mais próximo do arcabouço de outro Hitchcock - reciclado em nova versão mais explicitamente perversa: em Interlúdio (títuo original: Notorius), Ingrid Bergman chegava a casar-se com um agente alemão para espionar suas atividades. Mas como Interlúdio só seria lançado em 1946, aludir explicitamente a este filme exigiria uma liberdade de citação anacrônica com a época em que transcorre a ação de Lust, Caution (título internacional) que traz um formato que lembra explicitamente tais clássicos tradicionais do gênero - exceto pela sua (muito e talvez desnecessariamente) longa duração e pelas cenas de sexo quase(?)explícito. Encenado de fato pelo casal de atores ou representado?
O interesse da platéia será mantido durante a projeção demorada pela mise-en-scène detalhada - e valorizada pela fotografia climática de Rodrigo Prieto (de Frida e Brokeback Mountain); e pelos ganchos de questões que só serão respondidos bem perto do desfecho: o Sr. Yee vai permanecer sem suspeitas sobre a Sra. Mak/Wong? E Wong vai ficar restrita à representação sem que esteja “vivendo” o simulacro que inventou?
# DESEJO E PERIGO (SE, JIE)
China, Taiwan, Estados Unidos, 2007
Direção: ANG LEE
Roteiro: JAMES SCHAMUS e HUI-LING WANG baseado em conto de EILEEN CHANG
Fotografia: RODRIGO PRIETO
Montagem: TIM SQUYRES
Música: ALEXANDRE DESPLAT
Elenco: TONY LEUNG, WEI TANG, JOAN CHEN, WANG LEEHON
Duração: 157 minutos