O primeiro tiro a gente nunca se esquece. Os seguintes podem virar estatística. Até o dia do acerto de contas. Entre os dois pontos, o que fazia Zoran, bancário, pai de família? Fazia de conta que era o homem mais feliz do mundo – título de filme de alto impacto ao retratar o encontro de vítima e algoz, ambos moradores de Sarajevo, campo de batalha feroz às vésperas do século XXI. Na direção, Teona Strugar Mitevska, também co-autora do roteiro, nascida na Macedônia, e que conquistou vários prêmios com seu filme anterior Deus é Mulher e Seu nome é Petúnia. E é com pulso firme e mira certeira que ela retorna ao passado quando vizinhos de longa data se tornaram inimigos e jovens recebiam armas para usar e sentirem-se “úteis”. Nos idos de 1993, o “outro” era inimigo mortal em campo minado e polarizado até o fio de cabelo. E dane-se quem estiver na linha de tiro.
Ao início da trama, porém, fora marcas de tiros pelas paredes da cidade, o sol brilha em Sarajevo, e Asja, na faixa dos 45 anos, caminha rumo a performance bizarra armada por marqueteiros em busca do par perfeito. Tipo Tinder. Mas com regras bem definidas, do avental obrigatório ao contador de tempo sobre a mesa onde solitários se distribuem como alunos do Enem. Diferença: quem passar, ganha um parceiro.
A prova começa e o espectador pode suspeitar que terá uma comédia pela frente. Perguntas: cor, estação do ano preferidas. A câmera passeia por alguns casais, com paradas mais longas em Zoran, explicitamente atormentado, e Asja, a solitária romântica. O exame continua. Passa para questões de identidade nacional e religiosa. Sérvios, croatas, católicos, ortodoxos, muçulmanos. Na turma, duplas parecem se divertir. Zoran, ao contrário, explode. O até então homem mais feliz do mundo reencontra o passado compartilhado por Asja, quando tinham 16, 17 anos. Eram então inimigos de morte involuntários. E o que ele quer? Perdão.
Enquanto a jornada fomenta lances mirabolantes – de confissões em público a um break dançante, a alegria alguns vira suplício para Asja e Zoran, ilustrado por raros e rápidos flash-back. A catarse, para Asja, surge quando penetra em festa proibida para maiores de 18 anos. Talvez a possibilidade tardia de viver uma adolescência que lhe foi interditada.
Com ritmo, movimentação de câmera e montagem sob evidente controle, a dupla principal – Jelena Kordic e Adnan Omerovic – impressiona pela força e intensidade. Próximo a Quo Vadis Aida? , “o homem mais feliz” propõe questionamentos perigosamente próximos: nós contra eles, manipulação religiosa, armamento da população. Lamentavelmente inspirado em fatos.
*Texto publicado originalmente n'O Globo.