Infelizmente, assim como grande parte da política mundial, os Estados Unidos já vêm sofrendo há alguns anos (vide o governo Trump) com uma forte onda conservadora. Como consequência, leis e avanços progressistas já consolidados no país, como o direito ao aborto, vêm sendo suspensos. Diante deste cenário, o longa-metragem Call Jane, em cartaz atualmente graças à 24ª edição do Festival do Rio, se mostra extremamente necessário, tanto em terras estadunidenses quanto em outras regiões, como o próprio Brasil, por exemplo. O filme tem sua estreia prevista no circuito comercial para 28 de outubro.
A narrativa, inspirada em fatos e situada na década de 1960, é focada em Joy, uma típica dona de casa do subúrbio de Chicago, em um excelente trabalho da atriz Elizabeth Banks, mostrando que seu talento não se atém aos filmes de comédia em que usualmente atua e produz. Casada com o advogado criminal Will (interpretado por Chris Messina) e mãe da adolescente Charlotte (Grace Edwards), Joy está grávida pela segunda vez. No entanto, após sentir algumas indisposições, ela descobre que sua gestação é considerada de risco devido a um problema cardíaco e que tem apenas cerca de 50% de chance de sobreviver se levá-la até o fim. Ainda que esteja no primeiro trimestre de gravidez e exista uma grande chance de falecimento dela e do bebê, Joy tem o pedido de interrupção da gestação negado pelo conselho do hospital – formado somente por homens.
Então, a personagem vai em busca de diversos meios – legais e ilegais – para atingir seu objetivo e garantir seu bem-estar e sua sobrevivência. É neste momento de desespero que Joy conhece Call Jane, coletivo feminista fundado e administrado pela árdua militante Virginia (Sigourney Weaver), que auxilia mulheres a realizarem abortos de forma segura na cidade de Chicago, sem julgamento dos motivos que levaram a tal decisão. Assim, a pacata dona de casa se encontra cada vez mais envolvida com o grupo e obstinada a ajudar o maior número de mulheres possível, conhecendo suas dificuldades e riscos.
O elenco é composto por rostos familiares ao público; além das já citadas Elizabeth Banks e Sigourney Weaver, a atriz nigeriana Wunmi Mosaku, conhecida pelo seu excelente trabalho como Ruby na série Lovecraft Country, disponível na plataforma de streaming HBO, interpreta Gwen, uma mulher que levanta também discussões raciais em meio à temática feminista. Kate Mara também está presente no elenco como a vizinha de Joy, Lana, em uma atuação tão dispensável para a narrativa como sua personagem.
O longa-metragem, cujo roteiro foi escrito por Hayley Schore e Roshan Sethi, e dirigido por Phyllis Nagy – responsável também pelo premiado Carol (2015) –, é enfático ao mostrar o descaso político e social com a prática, frequentemente criminalizada em detrimento do direito à escolha pessoal. A influência patriarcal negativa é patente e está presente nos mais diversos núcleos ao redor de Joy: o médico que cobra um valor alto e inacessível a grande parte das solicitantes para realizar os procedimentos; o Conselho do hospital que desconsidera a vida e opinião da mãe e mulher mesmo com ela presente na deliberação; o médico que sabe o risco que sua paciente corre, e sugere que ela alegue insanidade para conseguir interromper a gravidez; e o próprio marido que não ajuda ou interfere na questão e não se cansa de reclamar das tarefas domésticas não executadas pela esposa, mesmo diante do delicado momento pelo qual ela está passando.
Como mulher, é quase impossível não sentir raiva ou frustração após os 121 minutos de exibição do filme, ainda que a mensagem final seja positiva. A discussão sobre a legalização do aborto é tão urgente quanto necessária, embora mais de quatro décadas separem os acontecimentos do filme dos dias atuais. Trata-se de uma questão social, de saúde pública, que acaba deturpada por movimentos políticos e religiosos. Observar o recuo de diversos estados americanos acerca desse direito e a dificuldade brasileira em qualquer tipo de abordagem é um retrocesso desanimador, e mais do que nunca filmes que desenvolvem a temática como – O acontecimento, de Audrey Diwan; Nunca raramente às vezes sempre, de Eliza Hittman; Uma canta, a outra não, de Agnès Varda; e o aqui comentado Call Jane – são extremamente pertinentes e necessários.