O título original, Aru otoko, surge na tela sobre uma das mais famosas pinturas de René Magritte, “A Reprodução Proibida”, na qual vemos um homem de costas em frente a um espelho que, surpreendentemente, “reflete” as mesmas costas do homem. Mas o tema central de Um Homem foge ao não-espelhamento surrealista da imagem, visando a identidade de cada um de nós. Inapreensível para os outros? Talvez até para nós mesmos? Eventualmente, mutante? O personagem central, por exemplo, Kido (Satoshi Tsumabuki) é de origem coreana, mas naturalizado japonês – qual é mesmo sua identidade? E o segundo marido da divorciada Rie (Sakura Andô, que esteve em Assunto de Família, de Kore-Eda, 2018), após um inesperado acidente, vai deixar dúvidas sobre se seu nome seria mesmo Daisuke Taniguchi, o membro de uma família rica que, entretanto, abandonou sem deixar rastros. O tema também é sugerido numa exposição de desenhos e pinturas de prisioneiros condenados à morte. Alguém comenta que as criações dos condenados não tentam dizer “não somos criminosos”, mas “não somos apenas o que vocês pensam que somos”.
A história começa com uma espécie de prólogo em que ‘Daisuke’ comparece várias vezes à papelaria em que Rie trabalha para comprar material de desenho e aquarela, mas ele também está tentando aproximar-se dela. Às vezes, ele é visto através da vitrine da loja, do lado de fora. [Bem mais adiante no filme saberemos que ele, bem antes, e antes de ingressar numa academia de boxe, ficava do lado de fora olhando para dentro]. Após uma elipse, vemos que eles constituíram família: o filho pequeno do casamento anterior de Rie já aparece pré-adolescente e eles têm uma menininha. Só então virá a trama algo policial/de mistério em que o advogado tenta descobrir quem seria de fato ‘Daisuke’ e – se o marido de Rie não era de fato quem dizia ser – o que teria acontecido mesmo com o homem que abandonara a família rica? Uma pista leva Kido a visitar um falsificador de identidades que está preso em duas das melhores passagens do filme: lembra uma visita a um oráculo que dá respostas diferentes do que a pergunta esperava obter.
O cinema tem muitos filmes em que há desaparecimentos duvidosos ou/e troca de identidades. Graham Greene escreveu duas histórias com títulos até parecidos, um clássico e famoso (O 3º Homem, 1949) e outro, o quase desconhecido filme para TV de 1988, O Décimo Homem - que traz no elenco Anthony Hopkins pouco antes de ficar superfamoso. Mais recentemente, a obra-prima Em Trânsito, de Christian Petzold, 2019, lidou de forma bem original com uma troca de identidade.
Um Homem consegue prender a atenção do público através da investigação que o advogado Kido leva adiante um tanto obcecadamente e a ponto de interferir na sua vida conjugal e familiar. As poucas cenas da família de Kido é um ponto fraco do roteiro, uma digressão que pouco acrescenta ao tema, tendo um desenvolvimento raso da já rasa sugestão da ambição da mulher que deseja uma residência mais ampla com ajuda financeira de seus preconceituosos pais - que chegam a falar de modo pouco gentil de coreanos na cara do genro.
Há uma certa pletora de alusões ao tema da fluidez da identidade que quase escorrega em didatismo pleonástico. A cena final pode ser vista assim, inclusive imageticamente, ao recorrer novamente à pintura de Magritte. Também a divisão irregular de cenas com Kido (e sua investigação), por um lado, e outras com Rie e seu filho (sem saber que sobrenome podem usar), por outro, acaba por deixar o desenvolvimento relativo à família de Rie menos interessante do que a pesquisa do advogado com as cenas em flashback sobre ‘Daisuke’.