Quando o diretor James Gray lançou "Amantes” (Two Lovers/2008), um drama familiar, após três filmes identificados como “policiais” (Fuga para Odessa/1994, Caminho sem volta/2000 e Os Donos da Noite/2007) e foi questionado sobre uma suposta mudança de temática, ele estranhou a pergunta dizendo que sempre fez filmes sobre grupos familiares, antes e então. E ele estava certo: se alguma coisa havia mudado seria o contexto da nova família abordada, judia (como a de sua origem), mas as questões centrais dos filmes anteriores sobre criminosos ou policiais eram mesmo questões de grupos de família, fosse criminosa, policial ou judia.
Em seu mais recente filme, Armageddon Time, ele volta a abordar uma família judia, só que no início dos anos 1980, após dois filmes mais espetaculares (Z: A Cidade Perdida/2016 e Ad Astra: Rumo às estrelas/2019) - que também tinham alguma ênfase em questões de família e igualmente apreciados por seus fãs incondicionais, mas que não me pareceram tão interessantes quanto os quatro primeiros ou sua obra-prima de 2013 “Immigrant”, aqui batizado de “Era uma vez em Nova York”. Gray me soou meio submerso em meio àquelas duas produções muito mais caras - e até com um astro como Brad Pitt no filme de 2019.
Mais reconhecido na França do que nos Estados Unidos, tido em alta conta por boa parte de críticos de cinema e cinéfilos interessados em diretores autorais, Gray, neste novo filme presta tributo ao Fellini de "Os Boas Vidas" (em duas breves tomadas do desfecho) e a Truffaut num episódio do roteiro que lembra demais uma ocorrência de “Os Incompreendidos” – ainda que Gray tenha afirmado que, neste caso, a situação era autobiográfica (como são as linhas gerais da história e os personagens no todo, sem as idealizações tão comuns em filmes baseados nas vidas dos seus autores).
A questão do antissemitismo não fazia parte de “Amantes”, mas tem um papel importante no novo filme, ainda que como memória que não pode ser abandonada quanto a pogroms ou aos campos da morte criados no nazismo. Entretanto, o que Gray quer enfatizar é a diferença do tratamento social dado às condutas inconsequentes de um garoto branco (judeu, mas poderia não ser) e de um garoto negro quando envolvidos nas mesmas enrascadas.
Sem ênfases desnecessárias, proselitismo ou discurso muito óbvio, a situação vai se desenvolvendo habilmente ao longo do filme com ajuda de um grupo de atores homogêneo em qualidade e com peculiaridades específicas quanto à construção de cada personagem por parte de cada intérprete. Falar de Anthony Hopkins quando não se desperdiça em filmes medíocres seria pleonástico; desnecessário elogiá-lo. Anne Hathaway, dez anos depois do Oscar (que quase parecia tê-la lançado na esfera das “maldições do Oscar”) exibe uma de suas melhores composições de personagem e chega a ser comovente, sem pieguice, na trivialidade de uma mãe judia já dos anos 1980 e longe da caricatura das piadas. Jeremy Strong enfrenta muito bem o papel ingrato do pai de família. Mas o frescor maior e ótimas surpresas vêm das participações dos dois garotos, o branco Banks Repeta e o negro Jaylin Webb.
Mais além da questão racial, o pano de fundo da época é o do nascer da era Reagan com seu discurso moralista e preconceituoso que associava homossexualidade ao Armagedão do título numa cena de TV que o filme mostra. É oportuno mostrar o início do que foi se radicalizando nestes quarenta anos: de um conservadorismo (reativo aos ideais dos anos 1960) que evoluiu/involuiu para uma extrema-direita racista, homofóbica, dominada pela ignorância, repudio às artes e extremamente nociva aos mais básicos conceitos de humanismo e de empatia. Ah! Pessoas de sobrenome 'Trump' já assombram o filme em breves passagens como serpentes meio que saindo dos ovos podres que cresceram tanto...