Críticas


MATO SECO EM CHAMAS

De: Joana Pimenta e Adirley Queirós
Com: Andreia Vieira, Débora Alencar, Gleide Firmino
16.11.2022
Por Maria Caú
Elabora sobre a iminência da explosão, mas caminha em fogo baixo por 153 longos minutos

A noite de abertura do Festival de Brasília 2022, que em sua 55ª edição vê o aguardado retorno dos eventos presenciais, fez ecoar a resistência do cinema brasileiro, com falas de teor bastante político, que apontaram para a esperança da reconstrução possível. Neste contexto, pareceu acertada a escolha de iniciar a mostra competitiva de longas-metragens com Mato seco em chamas, filme do Distrito Federal, dirigido por Adirley Queirós e Joana Pimenta, que traz um retrato a um só tempo ficcional e hiper-realista do que se convencionou chamar de “Brasil de hoje”, ou seja, um país em que o fascismo aparentemente adormecido alcançou uma erupção violenta e cobriu como uma lava espessa as relações humanas de outrora. Neste contexto, temos Brasília como a cidade do país em que as distopias (passadas, presentes, imaginadas) ganham corpo, elaboração já manifesta nos trabalhos anteriores de Queirós (Branco sai, preto fica; Era uma vez Brasília), que vira a capital do avesso para transcriá-la como cenário de tensão constante e inescapável (seja entre tempos históricos, seja entre diferentes gêneros cinematográficos, seja entre os espaços flutuantes da ficção e do documentário).

Aqui, temos apenas um fio de trama: duas irmãs compram um lote numa favela da região da Ceilândia, onde perfuram um poço e conseguem extrair e refinar petróleo, fornecendo gasolina para a região e se tornando uma espécie de núcleo de poder paralelo, em conflito com as forças repressivas de um universo distópico, de vigilância incessante, com toque de recolher e veículos de monitoramento estilo “caveirão”. A partir dessa premissa, a história se desenrola em movimentos fragmentados e esparsos, acompanhando as protagonistas e incorporando diversos elementos documentais. O filme se apoia na evidente força cênica das três mulheres centrais – as duas irmãs, uma delas uma ex-presidiária recentemente posta em liberdade, tentando retomar sua vida, e uma terceira mulher, que esteve encarcerada no mesmo presídio –, atrizes estreantes (o título “não profissionais” parece carecer de sentido no cinema nacional) que cativam o espectador e conseguem se mover com habilidade entre o intenso realismo da tragédia social e um humor orgânico quase pueril.

A narrativa dilui, no entanto, a proposta de crítica social com uma formulação bastante genérica sobre regimes antidemocráticos e formas de resistência (inclusive armada). O discurso bolsonarista, incluindo certo gestual que ecoa o regime nazista e o perverso slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, é reproduzido pelos agentes de repressão (há também um longo plano real das manifestações de apoio ao agora quase ex-presidente) sem que a estrutura dramática construa de forma aprofundada essas justaposições. Fica a sensação de que o filme sofre por ter descartado esboçar um roteiro minimamente estruturado, no qual o jogo de linguagem proposto poderia ganhar corpo e se mostrar mais consistente. Optou-se, ao contrário, por construir um faroeste de ares vagamente feministas (em alguns momentos, ligeiramente chapado em sua exploração da sexualidade lésbica no ambiente prisional), com sequências longuíssimas que vão se tornando progressivamente entediantes e cuja polifonia não soa disruptiva no cenário contemporâneo, parecendo uma solução simples para alinhavar uma narrativa vacilante. Trata-se de uma construção que elabora o tempo inteiro sobre a iminência da explosão (e há pelo menos duas ou três dezenas de planos em que alguém acende um cigarro ao lado de galões de combustível ou outros elementos inflamáveis), mas que caminha ela mesma em fogo baixo por longos 153 minutos, com o peso de quatro horas, parecendo muitas vezes querer alinear o espectador mais do que desafiá-lo ou convidá-lo a jogar junto.

No debate na manhã após a exibição, Adirley afirmou que jamais pretendeu fazer um filme “redondo”, querendo trabalhar com um tempo dilatado, que convidasse à imersão do espectador nos espaços retratados. “A gente joga com uma bola quadrada”, disse. Nesse sentido, causa estranheza que o filme dedique tanto tempo a preencher suas muitas lacunas de roteiro com extensos diálogos (ou monólogos) explicativos e diversas sequências reiterativas. A ideia do domínio dos recursos pelos oprimidos do sistema (e aqui o petróleo surge como síntese dos embates do capital) resulta muito difusa, ainda que se mostrem inspiradas a fotografia (de Joana Pimenta) e a direção de arte (assinada por Denise Veira). O filme traz também um bom uso do ambiente sonoro (mesmo que manter tantas canções em sua quase integridade acabe aos poucos dissolvendo a força dessas incursões) e momentos impactantes, como o uso irônico de algumas músicas, em especial “A montanha”, de Roberto Carlos.

Ao fim, nunca chegamos ao calor da sequência inicial de Branco sai, preto fica, premiado longa de Queirós. Aqui cabe pontuar que se apoiar em uma estrutura narrativa mais sólida, mesmo sem recorrer a um formato de roteiro tradicional, de forma alguma quer dizer construir um filme “redondo”, “careta” ou pouco experimental, mas, ao contrário, usar a quebra ou o hibridismo linguístico de forma mais deliberada e, por isso mesmo, mais potente. Isso posto, Mato seco em chamas nunca atinge o potencial incendiário (dos pontos de vista narrativo e político) que poderia alcançar se não se negasse orgulhosamente a melhor trabalhar sua construção dramática.


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Outros comentários
    5297
  • Carlinhos otto
    17.11.2022 às 02:21

    Onde vejo o filme supracitado?
    • 5298
    • Maria Caú
      17.11.2022 às 13:50

      Oi, Carlinhos. O filme ainda não estreou, mas será exibido na mostra de cinema negro do Estação nos próximos dias.