Críticas


ESPUMAS AO VENTO

De: Taciano Valério
Com: Rita Carelli, Tavinho Teixeira, Patrícia Niedermeier
16.11.2022
Por Maria Caú
Perdido entre o naturalismo e a farsa e com personagens caricatos, o roteiro não consegue aprofundar a discussão que propõe

De um lado, uma trupe de artistas de Caruaru, dedicada ao teatro de bonecos. Do outro, um conjunto de religiosos envolvidos numa espécie de seita que se dedica a outro tipo de encenação, esta da ordem do macabro. Um acontecimento extremamente violento une os dois grupos, modificando as trajetórias de ambos a partir daí.

Essa pequena sinopse, até promissora, parece apontar para uma obra bem intencionada, que se propõe a refletir sobre o lugar da arte popular no Brasil contemporâneo, em que o fundamentalismo religioso enxerga com frequência a cultura sob o prisma da desconfiança, ignorando o papel da arte na construção de uma sociedade minimamente livre e capaz de elaborar sobre si mesma. Infelizmente, o roteiro de Espumas ao vento (assinado pelo realizador, Taciano Valério, na companhia de Vanderson Santos), vacilante e mal estruturado dramaticamente, se mostra incapaz de trabalhar com uma construção de personagens tridimensional, indispensável a uma crítica social mais aprofundada que tencione tratar da tensão entre liberdade artística e fundamentalismo religioso num Brasil cada vez mais evangélico. Assim, a construção simbólica da morte da arte no Brasil dos extremismos resulta mal ajambrada em meio a uma sucessão de dramas parcamente delineados, expostos verbalmente pelos personagens em diálogos por demais explicativos, que cumprem a ingrata função de tentar mitigar os problemas estruturais da trama.

A narrativa se centra na figura de Manu (Rita Carelli), que se dedica hesitantemente à artesania da família, tendo abandonado o sonho de ser atleta – a corrida é utilizada como um ingrediente pseudopoético (a ação de correr como símbolo da liberdade solitária), mal trabalhado e pouco articulado ao conjunto geral. A narração da protagonista, em voz-over, surge como mais um elemento narrativo mal integrado, de que se lança mão aqui e ali para tentar amarrar as muitas pontas soltas e prontamente abandonado durante a resolução. Os conflitos profissionais da personagem central, apesar da atuação competente de Carelli, soam como falsos conflitos, e o espectador tem dificuldade de empatizar com uma personagem que parece agir de forma progressivamente errática sem qualquer justificativa (o roteiro, lacunar e desinteressado em resolver suas múltiplas inconsistências ou adensar as importantes discussões que esboça, agrava o problema).

A escolha de ambientar a trama no universo do tradicional teatro de mamulengos, fantoches típicos do nordeste brasileiro, resgatando uma arte centenária que cada vez mais perde espaço e corre o risco de morrer, tem seu valor, e as cenas da confecção e manipulação desses bonecos, feitos de papel machê, são o ponto alto do filme. No entanto, a sensação é de que a trama mal aproveita as especificidades do tema e poderíamos estar diante de qualquer outra expressão cultural. Cabe notar que Mestre Sebá, figura real e importante desta arte, interpreta o patriarca da família com carisma genuíno e o filme perde qualquer brilho quando seu personagem sai de cena. Outro problema é a flagrante diferença de tom entre as sequências que mostram a trupe, que funcionam numa chave algo naturalista, e aquelas que se dedicam aos fiéis da igreja “Baralho de Deus”, que, como o nome já evidencia, é retratada no viés da farsa. De fato, os vilões do filme, encabeçados pelo personagem de Odécio Antonio, um fiel com pretensões de se tornar ator ou pastor, pareceriam caricaturais mesmo no âmbito de um filme infantil. Estereotipar esses personagens, assim como dar ao principal antagonista uma virada absolutamente implausível e um “momento James Bond”, em que ele explica todas as suas intenções maléficas e suas dores à mocinha, não ajuda o filme a cumprir sua tese.

O confuso desenrolar precipita um desfecho que parece unir ideias de argumentos completamente distintos, elaborados para filmes díspares: uma farsa rasgada, um drama de ares poéticos, talvez uma tragédia sobre o estado da cultura no cenário pandêmico nacional. Aproximando a arte e o fundamentalismo com uma abrupta trama de vingança nas sequências finais, trilha que promove um estranho flerte entre esses dois âmbitos em conflito, Espumas ao vento acaba por suscitar uma leitura bastante despolitizante das possibilidades da arte popular no Brasil atual.


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