Sufocada no seio de uma família em que a incomunicabilidade é a regra, Jimena (Mônica Maria) tenta (re)estabelecer a conexão com Arturo, seu pai ausente, através de uma esparsa comunicação epistolar, enquanto busca seu lugar (físico e existencial) no espaço urbano de Belo Horizonte. As cartas entre pai e filha surgem em voz-over e delineiam aos poucos o perfil do enigmático Arturo, um peruano cuja ausência (infere-se) se liga ao racismo e à xenofobia que ele deixa antever ter sofrido ao tentar se integrar ao universo social ocupado pela esposa. A partir dessa troca, a jovem negra passa a questionar sua herança familiar e reflete sobre as diferenças entre ela e as duas mulheres com quem divide o espaço íntimo, sua mãe e sua avó, ambas brancas.
Muito embora essa premissa desperte algum interesse, o mal trabalhado roteiro (assinado pela realizadora, Clarissa Campolina, com dois outros nomes, Caetano Gotardo e Sara Pinheiro) cobre de um verniz pseudopoético o simples fato de que a narrativa é incapaz de aprofundar os conflitos (raciais, sociais, filosóficos) da personagem central. Nesse contexto, pululam sequências que traçam um paralelo entre corpos humanos e edificações de concreto do ambiente urbano (a personagem trabalha como arquiteta), numa incursão lírica que de forma alguma se sustenta. Essa dimensão supostamente alegórica, utilizada como recurso fácil e repetido à exaustão – temos diversas sequências em que personagens enclausurados em si observam a cidade através de suas janelas –, acaba por se revelar despolitizante e soporífera. Assim, não se assume o risco de adensar minimamente as críticas que se propõe (à moral burguesa, ao machismo estrutural ou ao racismo arraigado, todos caminhos de discussão que o filme parece abrir de modo quase leviano, uma vez que acaba por dissolver todos esses pontos numa construção de personagens pífia).
A apatia da protagonista, que observa as ruínas do seu cotidiano e das suas relações mais próximas com enorme distanciamento, como se espectadora da própria vida fosse, não tem alicerce na estrutura dramática e compromete qualquer processo de empatia. De fato, Jimena parece uma menina mimada, que apenas relutantemente acorda de um sono profundo em que não se questionava sobre a realidade à sua volta. Os dramas da personagem (a falta de explicações para o súbito silêncio do pai, os segredos da família, a busca por uma nova residência), rarefeitos e mal construídos, parecem fruto de reiterada negligência. Afinal, num filme de tintas realistas, como acreditar que Jimena não tem qualquer informação sobre o pai, um homem que teve um comércio bem-sucedido (um sebo) numa grande cidade e que ali viveu por anos, convivendo com os seus? O simples fato de que um vizinho da família oferece à protagonista de mão beijada toda sorte de esclarecimentos sobre a vida pregressa de Arturo mostra que a jovem nunca tentou de fato investigar o pai. O momento em que Jimena decide percorrer os sebos da cidade em busca de vestígios do pai (descartando completamente ações mais efetivas, como acessar a internet ou conversar com os conhecidos de Arturo) é mais um ingrediente pretensamente poético, que cobre com argamassa de má qualidade os muitos furos da carpintaria dramática do longa-metragem. Indo mais além, a sensação é de estarmos diante de um filme de época, tamanhos os anacronismos não justificados do roteiro (o fato de que pai e filha trocam cartas enviadas pelo correio é apenas um deles). Em certo sentido, trata-se de uma obra que nasce velha e que, também em seus diálogos e na narração das cartas – escritas em português e respondidas em castelhano –, soa empoeirada e pouco inventiva.
Há evidentes qualidades formais: a fotografia de Ivo Lopes Araújo cria com habilidade um universo nublado, em que a luz que vem do exterior vai se adensando paulatinamente, à medida que a personagem central encontra seu espaço; a construção do ambiente sonoro, de Gustavo Fioravante, é tão inspirada que em diversos momentos alça o filme para além do marasmo em que ele insiste em mergulhar. A sequência inicial, em que Jimena mira a demolição de uma casa de um ponto de vista impossível (de dentro), é muito forte (montagem, direção, desenho de som, tudo se une para, ali sim, conseguir transmitir a metáfora visual de um processo de transformação). A partir dessa poderosa imagem inicial, o filme vai, ele mesmo, ruindo aos poucos, enamorado de um ambiente poético que, com tijolos dramaticamente pouco densos, ele é incapaz de erguer com alguma solidez.