Nosso colega neste site, João Marcelo, percebeu que em uma cena de Justiça a Qualquer Preço, o termo usado para o título original, The Flock (nos dicionários: “manada”, “rebanho”), foi traduzido nas legendas como “corja”. É mais ou menos isso mesmo que o personagem de Richard Gere pensa sobre sua “clientela”: pessoas que cometeram crimes sexuais, agora em liberdade, mas que são monitoradas por funcionários de uma agência governamental de segurança (não exatamente policiais).
O protagonista é um destes agentes, obsessivamente aplicado (até demais) e que extrapola suas funções frequentemente. Ele vai se aposentar em poucos dias e deve orientar quem vai sucedê-lo (a personagem de Claire Danes), mas está totalmente empenhado em salvar uma jovem desaparecida na região naquela mesma semana. Ele suspeita que a moça esteja sendo vítima de algum dos membros da “corja” que ele acompanha: não acredita que o comportamento compulsivo destes pervertidos sexuais se modifique; está certo de que, mais cedo ou mais tarde, voltarão à transgressão. Restaria saber qual deles seria o provável seqüestrador.
Se a compulsão irresistível traz sofrimento íntimo para os que apresentam atos repetitivos da ordem de lavar as mãos dezenas de vezes, quando a coisa se manifesta na área do jogo compulsivo, isto pode comprometer toda a família do jogador. Quando se dá na esfera da sexualidade, é diretamente lesiva para as vítimas dos transgressores que não contêm seus impulsos. Para o “suspense” do enredo ser mantido, a trama lembra demais o gancho de Silêncio dos Inocentes (salvar uma moça raptada) mas com maior número de pervertidos e uma variedade quase nauseante de perversões.
O roteiro traz alguma originalidade ao sugerir aproximações do “homem da lei” com os criminosos: afinal, o que faz alguém se interessar por um serviço destes? A sociedade precisa de pessoas que executem tarefas que, para maioria das pessoas, é inimaginável como atividade laborativa. Mas a fronteira que separa policiais de criminosos pode ser mesmo bem nebulosa, como este filme sugere. Tal associação é usada até mesmo pelos desviantes: ele se compraz com o abismo moral que investiga? Qual seria a “tara” oculta do agente? Ou nem tão oculta: uma cena mostra de que violência ele pode ser capaz, “justificado” por uma boa finalidade. Os meios? Às favas com os rigores éticos da lei, como sugere o título brasileiro. Vale tudo: “a qualquer preço”
Em alguns aspectos, este filme apresenta curiosas coincidências com Tropa de Elite: seja por tratar de uma “passagem de cargo” com a iniciação de um novo agente por outro mais experiente; seja pelas atitudes que os personagens centrais de ambos os filmes se permitem, avocando a si “direitos” de atos "preventivos" que não são exatamente “humanos”. Para convencer o espectador de que vale tudo para inibir os pervertidos, estes aparecem como tarados de plantão que são muito, mas muito perversos, além de pervertidos. E a moça desaparecida precisa ser salva, como é lembrado a toda hora. As situações expostas podem ser mais desagradáveis do que parte das platéias toleraria. Não que haja muitas cenas “explícitas” de sadismo, mas as que estão lá, o que é sugerido, as reações dos investigados e as do agente da lei... já são suficientes para criar um clima mais do que tenso: desconfortável.
Não é muito auspiciosa a estréia americana do cineasta de Hong Kong, Wai-keung Lau (agora assinando como Andrew Lau), com histórico de 35 filmes por lá em quinze anos - e que ficou mais famoso por ter realizado Conflitos Internos (2002), a base de Os Infiltrados (2006), de Scorsese. Consta que houve cenas refilmadas por Niels Mueller (autor de O Assassinato de Richard Nixon, de 2004, seu único filme até agora). E The Flock ainda não estreou em território americano, sendo motivo de indagação sobre o que é que está havendo em vários sites estrangeiros de cinema.
A narrativa de Lau é competente, com planos inteligentes para apresentar a ação, a fotografia de Enrique Chediak ajuda, a montagem funciona bem - mas cabe uma pergunta análoga à que o filme levanta sobre o personagem que trabalha com uma "escória" humana que ele considera abjeta: o que faz com que se eleja roteirizar e filmar uma tal intensidade de sadismo em algumas das práticas enfocadas? Não basta levantar uma questão nietzscheana como a que é feita mais de uma vez ao longo do filme: "quando você olha para o abismo, o abismo olha de volta para dentro de você". O filme precisaria ser tão genial quanto para demonstrar tal tese sobre “abismos na alma humana”. Como está, fica a impressão de uma produção com interesse em certo grau de exploração sensacionalista, disfarçada pelo uso de alguns “álibis” para tratar das taras que apresenta: a questão sobre o que separa um agente da lei de um criminoso, mesclada à citação de Nietzsche - vernizes para exploração do pior que o ser humano pode apresentar.
# JUSTIÇA A QUALQUER PREÇO (THE FLOCK)
EUA, 2007
Direção: ANDREW LAU (WAI-KEUNG LAU) (com cenas refilmadas por NIELS MUELLER)
Roteiro: HANS BAUER e CRAIG MITCHELL
Fotografia: ENRIQUE CHEDIAK
Montagem: TRACY ADAMS e MARTIN HUNTER
Direção de Arte ED VEGA
Música: GUY FARELY
Elenco: RICHARD GERE, CLAIRE DANES,KADEE STRICKLAND, RUSSEL SAMS
Duração: 101 minutos
Site oficial: www.justicaaqualquerpreco.com.br