Em Exuberante Deserto, Dror Shaul traz sua visão sobre o que teria sido a vida em um kibutz israelense na década de 1970. O quadro apresentado não é favorável (consta que o título original em hebraico que dizer ‘terra louca’). Se não deixa de mostrar belas imagens de irrigação em uma região árida, lembrando o que os judeus foram capazes de fazer, frente à adversidade de uma terra desértica, o filme parece mais interessado em questionar como tais comunidades lidariam (e lidariam mal) com questões individuais, tão inevitáveis como são os seres humanos. Não excluindo, é claro, as individualidades participantes de um projeto comunitário de forte característica socializante.
Para demonstrar o que chega a parecer uma tese, o diretor e roteirista, originário da área de propaganda, não poupa esforços: enfoca uma família cujo pai morreu em condições que são omitidas do filho mais novo, uma mãe psiquicamente instável e um irmão mais velho que privilegia cuidar de si – diferentemente do caçula. Ora, garoto de seus 12 para 13 anos cuidando de mãe desequilibrada, invertendo os papéis tradicionais da relação mãe-filho, é uma situação complexa para quaisquer grupos envolvidos, direta ou indiretamente, com tal problema, sejam organizações socialistas ou não. Mas o roteiro parece pretender sugerir que, dentro daquela mentalidade de kibutz, haveria maiores dificuldades para apoio a uma pessoa com sérias crises depressivas e momentos de agitação grave.
A personagem chega a ter oportunidade de sair de lá e ir residir em outro país, mas essa hipótese não é considerada por ela: por sua identidade israelense? por ser emocionalmente frágil? por ter se deixado aprisionar psicologicamente aos ideais do kibutz? Sendo assim, soa complicada a opção do roteirista quando faz dela a porta-voz do que seriam os gravíssimos problemas da vida em tal modelo que privilegia o grupal e seria inábil quando necessário atentar para as individualidades. As coisas que ela vai dizer em um momento de desespero podem ser tomadas como fatos ocorridos daquela forma em sua vida, mas os aspectos negativos que ela denuncia também poderiam ter sido “barreiras” ainda maiores para que uma pessoa instável como ela conseguisse transpor.
Mas o diretor-roteirista também não deixa de fora aspectos mais “objetivos”: o filme se coloca explicitamente contrário a certas condutas que ainda vigoravam nos anos 1970 - segundo um letreiro de abertura do filme - tal como a criação dos filhos, até mesmo dos bebês, um tanto afastados de suas mães, já que as mulheres tinham tarefas idênticas às dos homens: então, como seria trabalhar em atividades “masculinas” e cuidar das crianças? Mas o roteiro vai “pegar pesado” desde o início, abrindo o filme com uma cena de bestialismo praticado por um líder importante daquela comunidade, apontando uma hipocrisia que o menino-protagonista testemunha. Talvez uma recordação do cineasta que viveu em um kibutz? Mas com que função dentro do roteiro? Um “choque” inicial? O mesmo personagem que pratica a perversão sexual terá outras cenas em que é mostrado que detém privilégios, é hipócrita, etc. Qual a importância desta cena, especificamente, para o desenvolvimento da história?
Da mesma forma, o encaminhamento para o desfecho é carregado nas tintas, ainda que a narrativa cinematográfica elegante atenue o que existe de “truque” melodramático na penúltima cena. Esta, aliás, é uma das características marcantes do filme: ele é bastante persuasivo, talvez pela experiência do diretor na esfera de propaganda. Não que ele siga o hábito de tantos que vieram desta área, “embelezando” excessivamente as imagens como em anúncios de sabonete: até mesmo, pelo contrário, a narrativa visual é econômica, como, por exemplo, na forte e breve cena muda em que o garoto usa o isqueiro do namorado de sua mãe e que serve como cartaz do filme. Também os enquadramentos são pertinentes e as tomadas não se alongam além do necessário. Tudo isso vai envolver de modo hábil o espectador que tende a se identificar plenamente com o menino sensível e questionador.
A interpretação do jovem ator (Tomer Steinhof) é capital para sensibilizar a platéia: a linha de desempenho é quase “minimalista”, sem exageros comuns em filmes com crianças em situações adversas. Ronit Yudkevitz no papel da mãe também oferece um dos mais fortes e verossímeis retratos de depressão alternada com rompantes de descontrole: o semblante da atriz é capaz de “evoluir” para uma espécie de “inexpressividade”, uma perda de mímica que transmite a depressão propriamente dita, algo diferente de uma enorme tristeza.
Mas, terminada a exibição, ficam no ar umas tantas questões, especialmente para os que não temos familiaridade ou maiores informações sobre a experiência socializante de tais comunidades. O que pode ser um depoimento semi-autobiográfico do cineasta (seria melhor fazer um documentário?) sofre com alguns exageros e artifícios de roteiro que demonizam a estrutura de kibutz - afinal, muito dos problemas que o filme retrata ali, poderiam se dar em outros grupamentos sociais, mesmo que de características diversas. E, neste sentido, a denúncia do que seria específico fica enfraquecida, apesar do discurso cinematográfico hábil, mas que soa proselitista. E inespecífico – o que, certamente, não era o que o diretor desejava.
# EXUBERANTE DESERTO (ADAMA MESHUGA’AT)
Israel, Japão, Alemanha, 2006
Direção e Roteiro: DROR SHAUL
Fotografia: SEBASTIAN EDSCHMID
Montagem: ISAAC SEHAYEK
Música: TSOOF PHILOSOF e ADI RENART
Elenco: TOMER STEINHOF, RONIT YUDKEVITZ, SHAI AVIVI, HENRI GARCIN, PINI TAVGER, DANIELLE KITZIS.
Duração: 90 minutos